segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Puta merda, dois mil e treze!

 
Pois é. Acabei de me dar conta que o último dia do ano chegou. Porra, essa linha temporal em que vivemos é foda. Clichê dizer isso, mas, puta merda, passa rápido pra caralho. Não sei se isso acontece porque queremos fazer muitas coisas ao mesmo tempo ou se alguém tá mesmo enfiando o pé no acelerador. Espero que seja a primeira alternativa, assim ainda dá tempo de fazer menos coisas.

O fato é que esse blog completou no último dia sete de dezembro seu segundo ano de vida. Há muito não escrevo um texto como esse, feito exclusivamente para ele. Hoje, infelizmente esse espaço tem servido apenas para catalogar o que ando escrevendo em outras casas, lugares nos quais eu provavelmente não escreveria se não tivesse tido a iniciativa de criar, há dois anos, o Donnerwetter!.

Graças a ele, nesse ano arrumei mais dois "empregos", em plataformas que me deram a oportunidade de ser mais visto e, por esse motivo, ter mais medo de escrever, policiar-me de maneira mais rigorosa. Passei a assinar textos na Obvious, plataforma que abrange textos sobre todos os tipos de arte, e, a convite do Vilto Reis, entrei para a equipe de colunistas do Homo Literatus. Tem sido uma puta duma experiência publicar nesses espaços, pois venho aprendendo muito com os outros escrevinhadores. Mesmo que às vezes isso ocorra de maneira inconsciente, há uma troca de experiências muito foda. É o lado bom da internet, esse rompimento infinito de fronteiras.

Eu, pessoa que tem aversão a números, confesso que às vezes me vejo apegado a eles. Sei que a ideia de escrever não deve ser atrelada à produção, mas sim à qualidade. Bem, olhando para a soma do que escrevi nesse ano, foram, contando com esse, quarenta e sete anacronismos modernos escritos manualmente, fora provas e trabalhos feitos para a faculdade. Essa quantidade de textos indica que, mesmo com muitas responsabilidades, consegui ler muita coisa. E o pior é que não cheguei na metade dos livros, quadrinhos e filmes que gostaria ter degustado. Escrever ficção também foi uma obsessão frustrada. Mesmo assim, admito que fico contente por ter conseguido gerar esse pequeno número. Óbvio que para o ano que vem algumas metas não alcançadas serão mantidas e somadas a outras. E tome correria.

Enfim, amanhã é dois mil e catorze e um novo ciclo blá, blá, blá. O que desejo para você, raro leitor, rara leitora? Menos Facebook e mais livros.

Até.

A coragem de Philip K. Dick

 
Texto publicado no Homo Literatus em 27 de dezembro de 2013.

Eis a grande questão levantada exaustivamente por Philip K. Dick: “o que é a realidade, afinal?”.

Os ingleses Alan Moore e Dave Gibbons imaginaram em Watchmen um mundo em que os Estados Unidos, durante a Guerra Fria, possuíam como principal arma contra ataques nucleares um ser tido como indestrutível. Dr. Manhattan teria a capacidade controlar átomos e moléculas de qualquer coisa sólida, podendo desintegrá-la com um estalar de dedos.

Em O Homem do Castelo Alto, romance lançado originalmente em 1962 e vencedor do Hugo Award, Dick projeta uma realidade na qual os Estados Unidos perderam a Segunda Guerra Mundial para os países que formavam o eixo.

A trama não apresenta um protagonista. Há uma gama de personagens que tentam sobreviver burlando um sistema legislativo dominado por japoneses e nazistas. Para isso, máscaras e identidades secretas são construídas. Suas atitudes são baseadas no que o oráculo chinês I Ching apresenta a seus olhos. Nada do que fazem é executado por vontade própria.

Robert Childan é um comerciante de objetos pertencentes à cultura estadunidense considerados de valor histórico que tenta ascender socialmente e ser aceito pela aristocracia japonesa, mesmo que para isso ele tenha que se rebaixar perante os conquistadores de sua terra.

O artesão judeu-americano Frank Frink é um homem que tenta ganhar dinheiro para ter de volta sua ex-mulher, Juliana Frink, uma instrutora de judô que transita de um lugar a outro sem saber exatamente o que quer. Ela acaba por se envolver com Joe Cinadella, caminhoneiro de persuasões fascistas que aparece de maneira misteriosa em sua vida, acontecimento esse que não se mostrará obra do acaso.

Mr. Baynes é um enigmático indivíduo sueco que chega aos Estados Unidos como enviado de uma indústria fabricante de plásticos para negociar com o Sr. Nobusuke Tagomi, um inseguro e supersticioso representante comercial japonês. O propósito dessa visita mostrará que as intenções de Baynes não são nada comerciais.
 
E há o homem do castelo alto, o escritor Hawthorne Abendsen, autor do livro O Gafanhoto Torna-se Pesado, romance que apresenta uma absurda realidade na qual os Estados Unidos teriam vencido a Segunda Guerra Mundial, fazendo com que nazistas e japoneses tenham que abaixar a cabeça para a supremacia norte-americana. Discutida entre todos os núcleos de personagens, essa obra incomoda seus leitores, que admiram a coragem de seu escritor.

Coragem essa que também faz parte das características de Philip K. Dick, que em O Homem do Castelo Alto nos coloca a desconfiar se o que vivemos é real ou apenas uma de variadas linhas temporais possíveis.

O Chevalier de Edgar Allan Poe II

 
Texto publicado na Obvious em 14 de dezembro de 2013.

P. D. James, no livro Segredos do romance policial: história das histórias de detetive, coloca o chevalier C. Auguste Dupin como o "primeiro investigador fictício a confiar primordialmente na dedução a partir de fatos observáveis." O conto "O mistério de Marie Rogêt" não deixa dúvidas a repeito disso.

A narrativa é baseada em uma história real, na qual Mary Cecilia Rogers foi assassinada em Nova York. Edgar Allan Poe transfere todo esse ambiente da cidade estadunidense para Paris, inclusive os jornais que publicaram matérias a respeito do caso, com nomes parecidos com os originais, mas em língua francesa.

O narrador sem nome, que relata as proezas do amigo, apresenta várias vozes - população, jornalistas, policiais - para mostrar como a de Dupin destoa de todas elas. O intelectual, que exerce a função de investigador apenas para sentir-se menos entediado, critica o sensacionalismo superficial dos jornais: "O perioódico que adota opiniões triviais (não importa o quão bem fundamentada seja a opinião) não conquista nenhum respeito com o povo. As massas consideram somente aquele que sugere contradições pungentes à ideia geral."

 
Dupin analisa todas as probabilidades baseado em evidências da anatomia humana e da física, dissecando e identificando notícias de jornal que soam falsas e manipuladoras, revelando-se um leitor de apurado e raro senso crítico. O chevalier dá uma aula de investigação criminal, na qual todas as evidências são consideradas.

Nota-se uma fusão entre jornalismo e literatura. A opinião pública também é levada em conta, já que é dotada de pontos de vista baseados nos rastros de violência que assolam a cidade. P. D. James, em sua obra citada anteriormente, coloca "O mistério de Marie Rogêt" como o exemplo pioneiro de investigação de gabinete, no qual "o detetive resolve o crime a partir de recortes de jornal e reportagens". Essa cena é recorrente em filmes e séries policiais, nos quais uma teia de fotos e notícias é montada para chegar aos criminosos.

A mente de C. Auguste Dupin apresenta-se como algo similar a isso: linhas imaginárias que se entrecruzam e encontram uma complexa e improvável solução final.

Intertextualidades, leituras e releituras

 
Texto publicado na Obvious em 12 de dezembro de 2013.

Para correr, é necessário que o sujeito esteja com o preparo físico em dia, estado esse que só é atingido mediante a prática regular de corridas, com periodicidades que podem variar dentro dos sete dias da semana. Com relação à leitura, talvez seja a mesma coisa. 

Quando se começa a ler um livro um pouco mais complexo em seu conteúdo, dependendo do preparo do leitor, a coisa não flui, os olhos pesam, as páginas não andam, o marcador parece estático e o livro torna-se um peso.


Uma boa alternativa para a leitura voltar a ser produtiva são releituras, ler o que já foi lido, algo que é certeza absoluta de um fluxo de palavras e páginas em ritmo leve, galopante, avassalador. O exercício de voltar a uma obra pode ser extremamente prazeroso, já que o leitor volta a saber o motivo pelo qual aquela história é grandiosa, além de estar atento a novos detalhes que uma primeira leitura não permitiu enxergar. 

Se a narrativa, curta ou longa, possuir referências a outros autores, melhor ainda, pois a curiosidade será atiçada e novas perspectivas serão abertas. Dizem que uma coisa leva a outra, que leva a uma mais adiante, formando-se uma linha ou um ciclo de ocorrências. 

No conto policialesco "A coleira do cão", da autoria de Rubem Fonseca, o introvertido delegado Vilela carrega para cima e para baixo um pequeno livro de poesia intitulado Claro enigma, sendo vigiado com desconfiança por aqueles que o cercam. Afinal, um homem que lê poemas destoa de todo o ambiente de criminalidade, miséria e corrupção que compõe a periferia do Rio de Janeiro.

 
Marçal Aquino, em sua breve narrativa "Impotências", fala da vida que seu falecido tio teve, comparando-a com supostas vidas que ele poderia ter levado, tragetórias de vida mais dignas, com namoradas, emprego, carros populares, filhos amáveis, sexo, John Lennon e, acima de tudo, Carlos Drummond de Andrade, poeta com um eu todo retorcido, de sete faces, que mistura o sangue do leiteiro ao produto que lhe dá um ofício.

Rubem Fonseca e Marçal Aquino são autores afins. Quem gosta de um, inevitavelmente vai viciar-se no outro, pois ambos misturam narrativas ágeis e ao mesmo tempo reflexivas, com personagens existencialistas que não encontram seu espaço no mundo em que vivem, habitantes de ambientes periféricos, imundos, decadentes, podres. Leitores de Raymond Chandler e Drummond, Rubem e Marçal trazem notável refinamento poético a suas narrativas policiais.

Uma dose diária, pequena e breve de Fonseca, Aquino e Drummond deixará o leitor em plena forma, apto a encarar qualquer leitura.

Caderno de notas literário

 
Texto publicado no Homo Literatus em 10 de dezembro de 2013.

Estamos na era do diário aberto, em que os usuários do Facebook reportam até o mais ínfimo e mesquinho evento de suas vidas, mostrando para seus seguidores o que está ocorrendo no seu cotidiano. Outrora, o diário foi um caderno cheio de segredos, guardado a sete chaves. Todo esse mistério caiu em desuso. Hoje, quanto mais exposição, por mais ridícula que ela seja, melhor.

No último sábado, foi publicada no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, matéria que relata a atual tendência do escritor brasileiro de aproximar sua vida à do protagonista de sua ficção. Além da grande maioria das histórias ser narrada em primeira pessoa, muitos dos traços apresentados coincidem com a trajetória particular do escritor. É a chamada autoficção, termo criado nos anos 1970, na França. Se trouxermos para a contemporaneidade, poderíamos dizer que se trata de um tipo de Facebook literário.

Escrito em forma de caderno de notas, Diário da queda, quinto romance de Michel Laub, é um livro a respeito de autor-recordações. As memórias de alguém podem ser algo penoso para quem seguirá sua linhagem. Um avô que sofreu com os terrores do nazismo não dará a devida atenção à sua família, pois estará sempre confinado com suas reminiscências, lembranças que ninguém poderá compreender. O pai, filho desse avô, sofrerá com isso. Ele não esteve em Auschwitz, mas o campo de concentração estará presente em sua vida, retratado no rosto amargurado de seu genitor. O neto daquele avô e filho de pai judeu, também sofrerá com aquilo que está muito distante de sua realidade, algo que ficou para trás na linha temporal e tornou-se um museu da humanidade no sul da Polônia, há milhares de quilômetros do Brasil. O fardo de ser judeu é para todos. Os velhos que sofreram os horrores do nazismo educam e sufocam suas crianças com mão de ferro para que elas estejam sempre desconfiadas e não sejam sufocadas pela mão de ferro do mundo.

O autor-narrador de Laub reflete sobre como Auschwitz e a culpa pelas atrocidades cometidas contra um colega de infância e as ofensas sofridas por ser judeu influenciaram na formação de sua personalidade. Tudo está de alguma maneira conectado, como se cada evento fosse apenas uma coisa complexa.

A narrativa é algo parecido com um fluxo de consciência, que retoma, de maneira ágil e sedutora, os fatos que envolveram a infância do narrador, sua adolescência, a chegada à vida adulta, a mudança de Porto Alegre para São Paulo, a descoberta da doença do pai. Todo esse movimento cíclico que evolui lentamente, trazendo revelações ao leitor, parece ter a finalidade de fazer com que a mente cheia de lembranças perturbadoras do narrador seja representada o mais fielmente possível.

Diário da queda é uma hábil mistura da linha cronológica da vida do autor com simples e pura ficção, para que não vejamos tudo pelo imaginário do escritor gaúcho.

Os motores da ficção

 
Texto publicado no Homo Literatus em 27 de novembro de 2013.

Ao ler o texto GUIA DE SOBREVIVÊNCIA: 5 Livros para quem deseja aprender a escrever ficção”, comecei a maquinar, como há muito não fazia, sobre os mistérios dessa profissão que almejo desde quando era (mais) jovem. Em seu artigo, Vilto Reis faz o que o próprio título diz: recomenda cinco obras aos que querem aprimorar ou até mesmo encontrar um caminho para tornarem-se escritores.
Escrever ficção foi algo que sempre me fascinou, em todo o seu processo criativo. A capacidade de elaborar uma trama, por mais simples que seja, botar a cabeça pra funcionar e desenvolver personagens, cenários, situações. Já me arrisquei, tentei criar uma história, um pequeno conto, enfim, todo leitor fascinado por literatura já deve ter passado por essa situação.

Inspirar-se em outros escritores pode ser uma saída. Mesmo os autores já consagrados têm suas referências. Alguns até se saíram melhores que suas fontes. Há um forte intertexto da literatura policial estadunidense, mais especificamente de Raymond Chandler, em grande parte da obra de Rubem Fonseca. Em contos como Mandrake, há até explícitas menções a obras protagonizadas por Philip Marlowe. Paulo Mandrake, o personagem de Fonseca, também possui traços bem parecidos com Marlowe. Particularmente, acho que Fonseca tornou esse gênero noir melhor, mais refinado.
Difícil é encontrar uma voz, um traço que caracterize o ritmo da narrativa. Escritores como Marçal Aquino são inconfundíveis. A leitura é densa e flui na velocidade de thrillers policiais do cinema. Essa característica pode ser comprovada em livros como Cabeça a prêmio e O invasor (que já tiveram adaptações fílmicas). Milton Hatoum e Michel Laub são possuidores, como avaliou o crítico Nelson de Sá, de prosa elegante. Difícil não ser cativado por Cinzas do norte (Hatoum) e Diário da queda (Laub).

Ser voraz leitor ajuda no processo da escrita? Não sei. Escrever o texto que aqui se apresenta não está sendo tarefa das mais fáceis. Montes de leituras talvez atrapalhem. Quem lê livros, lê resenhas, crônicas, artigos. A internet abriu oportunidade para um monte de gente que escreve muito bem mostrar seu trabalho. Leio textos de muita gente que, como eu, escreve porque acha que tem algo a dizer. O problema é: quem disse que o que tenho a dizer é importante? A qualidade dos outros textos pode levar à insegurança. Sentar aqui, escrever numa folha branca, ler, reler, passar para a tela do computador, organizar as ideias, tentar antecipar qual será a avaliação de quem vai lê-lo. Algo penoso? Não tanto quanto cortar cana, mas tem suas dificuldades. Criticar é uma coisa. Ser criticado é outra. Há a paranoia quanto à crítica silenciosa, daqueles que não comentam nem agride o que leem, mas, por dentro, refletem: “que sujeitinho mais besta!”.

O talento para a escrita, claro, é imprescindível. Tenho colegas que, vou te contar, escrevem bem pra caramba. Por esses dias encontrei um amigo que disse ter finalizado seu primeiro romance de mistério e aventura. Pelo que já li dele, serei um dos primeiros a adquirir o livro, caso seja publicado. Essa galera que compõe a literatura brasileira contemporânea também é muito boa. O interessante é que, hoje em dia, há vários cursos de produção literária. Nomes como Carol Bensimon e Daniel Galera já passaram por tais caminhos. Meu amigo, inclusive, também já fez o seu. Como o próprio Vilto diz em seu texto, apenas aprimoraram um talento que já era inerente.

O narrador de Michel Laub, em Diário da queda, diz que sua profissão exige apenas que escreva dois artigos por semana e publique um livro a cada década. Ele já conseguiu tornar a escrita sua única profissão. Consegue escrever ficção e sobre temas do mundo real. Até mais ou menos meu quatorze anos sonhava em ser roteirista de histórias em quadrinhos. Hoje, além de argumentista para gibis, almejo a literatura ficcional. Confesso que estou tentado a ler os livros indicados por Vilto. Quem sabe não seja uma porta de entrada para entender, ao menos um pouco, as engrenagens que movimentam os motores da ficção?

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Em favor da crônica futebolística

 
Texto publicado no Homo Literatus em 13 de novembro de 2013.

Quando se assiste a um jogo de futebol, as emissoras televisivas conseguem mostrar um lance em seus mínimos detalhes. O momento do passe, do chute, o salto do goleiro, o carrinho do zagueiro, a bola a estufar as redes. Para os fanáticos pela pelota, a câmera em slow motion é algo para se apreciar tal fosse uma pintura. A tecnologia é, às vezes, uma benção. Mas dificilmente essas imagens em câmera lenta conseguirão superar a crônica esportiva na descrição dos movimentos que antecedem uma jogada de efeito, um chapéu, um drible por entre as pernas, a pedalada, a cavadinha que desmonta um goleiro.

Para os boleiros literários, as páginas de esporte são um prato cheio aos domingos e segundas-feiras, com análises, pranchetas, críticas e palpites. Juca Kfouri e seus textos políticos, Paulo Vinícius Coelho e seus esquemas táticos, Tostão e sua obsessão pelo futebol arte. Já ouvi alguns dizerem que a crônica seria um gênero literário menor. Discordo. É graças a ela que muitos contos (esse considerado pelos preconceituosos um gênero maior) futebolísticos foram concebidos.

“Abril, no Rio, em 1970”, do volume de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, relata, com linguagem puramente jornalística, a melancólica história de um jovem que tenta chamar a atenção de um olheiro do Madureira num jogo teste. Mas o futebol é ingrato para aqueles que o amam e querem viver dele:
"Eles ganharam o cara ou coroa, escolheram o campo. Pirulito deu a saída, atrasando para mim, enfiei de curva para o Gabiru na ponta, mas a bola foi no pé do adversário. Corri pra ver se recuperava a jogada. Enquanto eles triangulavam em cima de mim eu pensava, porra, comecei enfeitando, agora estou igual a bobo na roda, nem sei o que estou fazendo."
Páginas sem glória carrega dois contos e uma novela homônima, que conta a história de Zé Augusto, o Conde, jogador malandro, adepto à boemia e às libações, jogador do Fluminense e do Bonsucesso nos anos 1950 e 1960. Misturando ficção com realidade, Sant’Anna conta a curta, porém, notável trajetória deste jogador que, ao contrário do protagonista de Rubem Fonseca, gostava mais de apostar no turfe do que de seu próprio ofício. Filho de influente deputado, Zé Augusto sabia os caminhos para se chegar ao gol. Categoria e elegância eram suas marcas dentro e fora do campo. Se este tipo de comportamento é execrado pela imprensa nos dias de hoje, que dirá na daquele tempo. Com sua apurada câmera narrativa, Sérgio Sant’Anna descreve, baseado em crônicas jornalísticas da época, as geniais jogadas do Conde, que sabia como ninguém deixar zagueiros a chutarem o vento e goleiros ridiculamente estatelados no chão:
"Não que Zé Augusto quisesse desrespeitar o Castilho, mas respeito demais também não tinha, pois não acompanhava o futebol profissional de perto. As pernas abertas do outro estavam pedindo e o Zé enfiou a bola entre elas, porque era o caminho mais fácil para o gol."
Com detalhado slow motion lírico, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna fizeram belas jogadas individuais, pois foram bem servidos por pontas de lança como Juca, PVC e Tostão, que, se não dão show, garantem o bom resultado das narrativas jornalísticas todas as semanas, dando chapéu naqueles que ainda não acreditam no valor literário da crônica esportiva.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O Chevalier de Edgar Allan Poe I

 
Texto publicado na Obvious em 2 de novembro de 2013.

Edgar Allan Poe é sabidamente um ícone das histórias de terror e mistério. 

Seu legado é de grandeza imensurável. Mas, talvez, a sua maior influência esteja nas narrativas policiais. Seu protagonista, o excêntrico chevalier C. Auguste Dupin serviu de base para a criação de inúmeros detetives. Arthur Conan Doyle concebeu Sherlock Holmes. Agatha Christie criou Hercule Poirot. Todos eles peculiares cavalheiros que resolvem enigmas por meio de investigações cerebrais, ao contrário do que ocorre no romance policial estadunidense, em que o personagem principal soluciona seus enigmas por meio da violência e do acaso, como Sam Spade e Philip Marlowe.

"Assassinatos na Rua Morgue" é o primeiro dos contos da chamada trilogia Dupin. O narrador, um Dr. Watson sem nome, para introduzir a trama a ser relatada, faz diversas comparações entre tipos de jogadores. Ele opõe enxadristas e jogadores de dama: os primeiros calculam, os últimos analisam. Alguns são inteligentes, outros concentrados e ainda há a classe dos perspicazes. Mas, segundo ele, o analista é o tipo de jogador mais atento, que nota variações externas e internas. É aí que se enquadra Dupin, um intelectual amante da escuridão, que lê, reflete e produz de maneira mais eficiente nas trevas.

 
Neste conto, um misterioso crime, em que mãe e filha são brutalmente assassinadas, é o quebra-cabeça a ser resolvido. O jornal apresenta testemunhas que ouviram barulhos no interior do apartamento em que ocorreram as mortes. Como eram de diferentes nacionalidades e não conheciam o "idioma" falado pelo suposto assassino, cada um dá sua opinião.

A força policial, como é recorrente nas narrativas criminais, mostra-se perdida. Aos seus olhos, o caso se define como insolúvel. É por isso que Dupin, um indivíduo de comportamento distraído e personalidade vazia, entra no caso, já que enxerga além dos relatos publicados pela imprensa local. Ele recorre a argumentação dialética e a estudos teóricos na busca pela verdade, provando sua grande bagagem intelectual. A descoberta do inimaginável assassino mostra o motivo pelo qual C. Auguste Dupin é considerado um personagem imortal e digno de inspiração para tantos escritores.

Anti-hérói. Sutil. Enigmático. Amoral. O chevalier de Edgar Allan Poe segue presente nas entrelinhas da ficção contemporânea.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Raymond Chandler e o detetive do acaso

 
Texto publicado no Homo Literatus em 30 de outubro de 2013.

No livro Segredos do Romance Policial: história das histórias de detetive (Três Estrelas), P. D. James dedica um capítulo aos romances policiais e detetives estadunidenses intitulado “Durões por fora, sensíveis por dentro”. Nele, James aponta para as peculiaridades do roman noir da terra do Tio Sam: violência, desigualdade social, corrupção, suborno e, claro, assassinato, crime caro comum às narrativas policiais. Todos esses elementos estão presentes na obra Janela para a morte (L&PM), da autoria de Raymond Chandler.

Philip Marlowe, o protagonista das histórias de Chandler, é contratado por Elisabeth Murdock, ricaça viciada em vinho do Porto, para investigar o desaparecimento de uma valiosa moeda, o Dobrão Brasher. Inescrupulosa e preconceituosa como é, Murdock acusa Linda, dançarina de Los Angeles e ex-mulher de seu filho, Leslie, pelo furto.

Marlowe pode ser considerado um detetive do acaso, se comparado aos clássicos investigadores C. Auguste Dupin e Sherlock Holmes, que resolvem seus enigmas de maneira cerebral. Amante do jogo de xadrez, conhecedor dos maiores jogadores da história, movimenta suas peças de modo aleatório, tal fosse um enxadrista iniciante.

Para solucionar o caso da moeda desaparecida, embrenha-se em um mundo repleto de vigaristas e assassinos. Sendo assim, ele se depara com três cadáveres, vítimas de assassinato, que colocam a polícia em seu encalço. Não bastasse isso, o passado da família Murdock vem à tona, revelando que esse caso não se resume ao sumiço de um item valioso.

No desenrolar da trama, percebe-se a crítica social exercida por Chandler, que mostra pessoas da baixa sociedade, residentes dos bairros pobres de Los Angeles, que perambulam pelas entranhas da alta classe social de Pasadena. A diferença entre ricos e pobres está nos dentes amarelados, no uísque barato, nas roupas mulambentas.

A narrativa é, de uma só vez, ágil e crua, com longas e detalhadas descrições peculiares à pulp fiction, que alongam a história, beirando a divagação. Os cenários são descritos minuciosamente pelo protagonista-narrador, dando certo tom poético à narrativa. O título da obra, brutal e enigmático, só é explicado nos derradeiros momentos da trama.

Janela para a morte, além das outras obras de Raymond Chandler, influenciou gerações de escritores. É um clássico por excelência.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Crônica da solidão

 
Texto publicado no Homo Literatus em 24 de outubro de 2013.

Há sete anos tomo ônibus para o trabalho no mesmo local, na mesma hora. Várias pessoas já se utilizaram daquele ponto. Ela estava lá pela primeira vez. Conhecia-a de vista há algum tempo, pois se utilizava do mesmo itinerário, embarcando em outra paragem, algumas quadras após a minha. São cinco e pouco da manhã.

“Bom dia!”

“Bom dia…”

“Ah, é aqui que o ônibus para?”

“É…”

“Ah, pensei que fosse ali. Antes eu morava na rua dezoito, mas como meu marido voltou pra Indaiatuba, fiquei com medo de morar sozinha, daí aluguei um quarto na casa da Soninha. Ela me disse que é viúva e seus filhos não moram mais ali e também tem medo de ficar sozinha. Aí, é bom, né? Uma faz companhia pra outra.”

“Uhum.”

“Meu marido voltou pra Indaiatuba porque tá difícil de arrumar emprego por aqui. Levou os quatro cachorros com ele. Eu trabalho lá na empresa há quatro anos. Fui transferida pra essa filial no início de 2011. Como meu marido tinha emprego em Indaiatuba, vim sozinha, entrei em depressão, voltei pra Indaiatuba, me tratei, voltei pra cá com meu marido, que pediu a conta no antigo serviço, mas teve que voltar pra lá, porque aqui tá difícil. Mas no ano que vem, já combinei tudo com o meu supervisor, eles me mandam embora, daí eu volto pra Indaiatuba. Estou fazendo técnico em enfermagem. Acabo no meio do ano que vem. Estou com quarenta e três anos, sempre trabalhei em linha de produção. Daí, como enfermeira, eu posso trabalhar até os sessenta anos. Aí, posso arrumar trabalho em Indaiatuba. Aí, é bom, né?”

“É.”

“Tsc, olha só o tamanho da minha mochila. Saindo do trabalho, vou direto pro RPG. Tô levando minhas roupas. Será que vai chover? Tenho uma capa de chuva, também. Será que vai esfriar? Ainda bem que peguei minha blusa.”

O ônibus chegou. Por ser muito cedo, como sempre, os outros passageiros estavam adormecidos. Busquei, como sempre, um banco vazio, localizado nos fundos. Ela se sentou, como sempre, num dos primeiros bancos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Conteúdo obrigatório na sala do dentista: gibis

Texto publicado no Homo Literatus, em 9 de outubro de 2013.

Ao abrir a boca em frente ao espelho, visualizo uma série de obturações prateadas que cobrem meus dentes do fundo. Quando sorrio, vejo uma dentição mais ou menos alinhada, pode-se dizer até apresentável, fruto do uso de aparelho por nove anos.

Resinas que substituem pedaços quebrados. Gengiva com cicatrizes. Arco colado na parte traseira dos frontais inferiores. Passei boa parte de minha infância em consultórios ortodônticos. Sim, eu tinha muito medo. Minha mãe que o diga. Quase era preciso me amarrar à cadeira e tapar minha boca com mordaça, tamanho era o berreiro. Um caos. Uma vergonha. Enfim.

Mas, acreditem ou não, eu adorava a sala de espera. Motivo: os gibis. Inúmeros e variados que eram, faziam-me esquecer por alguns minutos os terror que me aguardava para dali a pouco. Eu lia vorazmente o máximo possível antes de ouvir meu nome proferido pela secretária, torcendo para que a restauração do pobre coitado lá dentro não desse certo e precisasse ser refeita.

Foi esperando pela minha vez nestes lugares que desenvolvi minha admiração pela Turma da Mônica, o que resultou na fissura pela leitura, que me acompanha até hoje. Mais do que pelos habitantes da Rua do Limoeiro, meu preferido sempre foi o Chico Bento. Ele, Zé Lelé, Nhô Lau e companhia me faziam tentar (em vão) segurar o riso, enquanto os outros pacientes olhavam desconfiados em minha direção. No auge dos meus oito, nove anos, saia dali com vontade de passar um tempo inesgotável lendo aquelas revistinhas, pois, talvez inconscientemente, percebia que aquilo aliviava um pouco minha dura realidade odontológica. Posso dizer que não foi em uma biblioteca que meu interesse pela leitura se desenvolveu, mas sim na sala de espera de consultórios.

Outro dia, ao ir para uma consulta de rotina (ainda possuo um pouco de medo, mas consigo controlá-lo), notei que havia muitas revistas na recepção. Caras, Contigos, Vejas, Épocas. Procurei por baixo da pilha. Nenhum gibi. Havia uma criança ali, inquieta, apavorada com os ruídos arrepiantes que vinham da outra sala. A mãe não conseguia acalmá-la. Não havia nada para distraí-la. Aquelas revistas de gente chata não serviam pra ela.

Pensei no trauma dessa criança, que não extrairia nada de bom daquelas idas ao dentista. Perguntei-me se algum dia ela poderia se interessar pela leitura, se haveria uma situação propícia como aquela para que ela descobrisse que a ficção é a melhor maneira de fugir do mundo real.

Conclui que, talvez, o número de leitores no Brasil fosse maior se os gibis fossem conteúdo obrigatório de uma sala de espera.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O legado de Edgar Allan Poe

Texto publicado no Homo Literatus, em 7 de outubro de 2013.

Atualmente, quando se pensa em tramas policiais e histórias de detetive, é quase impossível não associar esse gênero aos produtos da indústria estadunidense de entretenimento. Filmes e séries com frenéticas e violentas investigações policiais, em que os tiras quase sempre chegam à solução por meio de investidas truculentas, são bem comuns e geram grande receita.

No romance policial não é diferente. Raymond Chandler inseriu seu protagonista, o detetive Phillip Marlowe, no decadente e violento cenário dos Estados Unidos das décadas de 1920 e 1930, auge da Lei Seca e do colapso econômico norte-americano. Nenhum pouco cerebral, Marlowe se utilizava do acaso para resolver os casos nos quais estava envolvido e, por isso, muitas vezes sofria as brutais consequências por se meter em ninhos de gangsteres e policias corruptos.

Porém, antes de “violentos” escritores como Dashiell Hammet e James Ellroy, Edgar Allan Poe, consagrado por suas histórias de horror e mistério, deu vida ao Chevalier C. Auguste Dupin, excêntrico parisiense que tem, assim como Sherlock Holmes, suas ações narradas por um indivíduo que convive com ele, fazendo as vezes de Dr. Watson. Como se vê, possivelmente os contos da “trilogia Dupin” serviram como fonte direta de inspiração para Sir Arthur Conan Doyle.


Esta tríade de narrativas curtas formada por “Assassinatos na Rua Morgue”, “O mistério de Marie Rougêt” e “A carta roubada” mostra um extravagante indivíduo, simpático ao exercício intelectual que, não por qualquer simpatia às vítimas, mas sim pelo prazer de resolver enigmas, envolve-se na investigação de mortes e roubos.

Sentado em sua sala, envolto por trevas e anéis de fumaça provenientes de seu cachimbo, Dupin resolve as ocorrências por meio de deduções baseadas em cálculos matemáticos, estatística e poesia. Sua mente vai além dos métodos investigativos da polícia parisiense, que, segundo ele mesmo a define, é bem intencionada, porém, limitada. Em momento algum ele se vale da força física em suas empreitadas, passando a imagem de um autêntico cavalheiro pensante, cerebral em todos os aspectos de seu ser. Na surdina, baseado em depoimentos díspares com poucas coincidências, notícias de jornal e complexa obviedade de um esconderijo, Dupin surpreende a todos, inclusive ao narrador de suas peripécias, que não se cansa de encontrar novidades em seu curioso comportamento.

Além do misterioso corvo de seu famoso poema e de um assustador e enigmático gato preto, Poe deixou como legado, quando faleceu há 154 anos, um personagem carismático, que se tornou clássico para todos os amantes da boa ficção policial.

domingo, 27 de outubro de 2013

Contradição divina. Hipocrisia diabólica.

 
Artigo publicado em 29 de setembro de 2013 no Homo Literatus.

Como seria uma igreja fundada pelo pior e mais clássico inimigo de Deus?

Machado de Assis, com seu imaginário crítico e irônico, construiu esse absurdo e cômico cenário no conto A igreja do Diabo, publicado pela primeira vez na Gazeta de Notícias, em 12 de fevereiro de 1883. Esta pequena narrativa, dividida em três capítulos, mostra a complexa natureza humana, cada dia mais incompreensível.

O Diabo decide fundar seu próprio templo com a justificativa de que, apesar do aumento das maldades no mundo e de súditos em seus domínios, não havia nenhum tipo de regra ou ritual que regularizasse os atos daqueles que cometiam barbaridades. Ao contrário das outras igrejas, que se dividiram e guerreiam por um mesmo segmento, a sua seria mais forte, de núcleo único.

Sua igreja possui seus próprios fundamentos, nos quais diversas atitudes consideradas imorais pelas premissas divinas são questionadas. Afinal, as regras constituídas por Deus nunca definiram de maneira clara o que seria bom ou ruim. Se posso vender meus bens materiais, como minha casa, porque não poderia comercializar meu voto? Se um carro pode ser comprado, porque os indivíduos julgados pelo mensalão não poderiam comprar veredictos favoráveis? Contradição divina. Hipocrisia diabólica.

O próprio Satanás se define como o senhor da objeção.  A humanidade se prova ainda mais incoerente. Ao integrar-se à diabólica igreja, o sujeito tem total liberdade para praticar os sete pecados capitais, sem reprimendas. Porém, o homem sente grande necessidade de transgredir, burlar às escuras, um sistema de regras.

Viver regrada ou abusivamente? O que, afinal, o ser humano quer? Viver de maneira correta, sem excessos, dividindo ganhos com os menos favorecidos, sacrificando-se por um ente querido para, no final de sua vida, obter uma morte jubilosa seguida de merecido e eterno descanso no paraíso?

O avarento deixa de ser pão-duro e torna-se econômico. O guloso resolve dividir suas iguarias. O preguiçoso quer trabalhar. Ao final de sua jornada, nem o Diabo consegue lidar com tamanha complexidade. Somente Deus e sua infinita paciência conseguem lidar com os absurdos comportamentos de suas crias.

Fica a dúvida de qual teria sido, há 105 anos, o destino de Machado de Assis.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Uma colcha de retalhos que se descostura


Texto publicado em 25 de setembro de 2013 no Homo Literatus.

Reconheço-me como um adorador de livros. Além de venerá-los e consumi-los de maneira compulsiva, gosto muito de pesquisar a respeito de obras literárias.

Apesar disso, descobri, na faculdade, que há um elemento que muitas vezes deixa essa atividade um tanto quanto monótona. Tudo o que meros mortais como eu desejamos falar a respeito de determinados autor e obra, devemos recorrer a crítico e texto consagrados, ou seja, ao cânone.

Personagens, enredo, foco narrativo, enfim, ponderar sobre cada elemento, todo tijolo que foi utilizado e considerado pelo escritor até ver sua obra pronta. Então, para fugir do rigoroso sistema acadêmico, descobri uma forma prazerosa de escrever sobre aquilo que li.

Uma resenha bem estruturada pode ser tão boa quanto a narrativa da qual está tratando. O crítico explora subjetivamente o livro lido, fazendo um recorte daquilo considerado essencial na trama, expondo suas sensações particulares, que depois podem ser confrontadas com a de outros leitores, criando-se um grande círculo vicioso. Isto gera a possibilidade de debates. A divergência de pensamentos é o que consagra uma obra.

Um excelente exercício propiciado por essa atividade é a identificação de intertextualidades. Muitos escritores bebem em fontes clássicas e sutilmente as incorporam em seu texto.

É o que fizeram Rubem Fonseca, com o protagonista de suas narrativas policiais Paulo Mandrake, livremente inspirado no detetive Phillip Marlowe, de Raymond Chandler, e Machado de Assis, que elaborou a eterna dúvida a respeito da fidelidade de Capitu na cabeça do pobre Bentinho, pautado na peça Otelo, assinada por Shakespeare. As possibilidades comparativas são inesgotáveis.

Saindo do território literário e indo até à sétima arte, é impossível não pensar em Quentin Tarantino, apontado como um liquidificador de cultura pop, criador de personagens como Django e Jackie Brown, inspirados, respectivamente, em figuras dos estilos western e blaxploitation.

O livro deve ser encarado como um mosaico ideológico, uma colcha de retalhos que se descostura com o intuito de intrigar, instigar e, acima de tudo, humanizar seu leitor.

O balancete de Martin Santomé


Texto publicado em 21 de setembro de 2013 na Obvious.

Acordar, trabalhar, comer, sobreviver. Escrito em forma de diário, A Trégua, do uruguaio Mário Benedetti, mostra a trajetória de um homem resignado à rotina diária, que flutua sobre uma zona de conforto da qual não abre mão. 

Protagonista e narrador de seu cotidiano, Martin Santomé é o relator dos dias que antecedem sua aposentadoria. Em meio a uma crise de meia-idade, ele teme ao ócio iminente, que o arrancará de seu repetitivo e monótono cotidiano laboral. 


Seus hábitos são encarados como algo que o blinda de frustrações. Qualquer evento que saia disto trás certo desequilíbrio emocional, por isso, Santomé, viúvo e pai de três filhos, junto à mesa do escritório ou de um café, vive dias automáticos, que remetem à mecânica maneira como realiza seu trabalho de contador: “Hoje foi um dia feliz. Só rotina.”

Sujeito que se dá muito bem com a contabilidade, tem extrema dificuldade em se relacionar com seus próximos. Dedica-se a coisas exatas, ignorando a complexidade das existências que o cercam. O sexo é uma atividade de prazer momentâneo, enquanto a vida em família se compõe de relações conflituosas, já que ele não sabe e nem quer exercer seu papel de pai. As antigas amizades são, em sua maioria, algo que não deixou nenhum tipo de saudosismo.


Suas anotações diárias mostram que, por trás de cada rosto impassível, sorridente ou amargurado, há a frequente e ininterrupta sucessão de pequenas desgraças cotidianas. As rotinas paralelas se entrelaçam, cada qual com seu mundo sombrio e particular.

 As chances ilusórias de Martin Santomé, promessas de felicidade, são dadas por Isabel e Avellaneda, as mulheres de sua vida. Cada oportunidade constitui um abrupto e traumático rompimento cíclico, que é seguido de indagações sobre a existência de um deus/Deus perverso e manipulador. 

Martin Santomé, metódico contador, faz um balancete existencialista de sua biografia automatizada, desprovida de sentimentos. Quando ele finalmente redescobre o que é sentir algo, um golpe fatídico tira a única coisa boa de seu calculado e inexato dia-a-dia.

Compre com 1 clique


Texto publicado em 14/09/2013 no Homo Literatus. 

Ao raro leitor, que esta página acaba de acessar, faço a seguinte pergunta: é a única janela aberta em seu navegador? Muito provável que a resposta seja negativa, pois essa tal de rede mundial dos computadores oferece tantas possibilidades informativas que fica difícil ater-se apenas a uma.

Sinto saudade do tempo em que juntava sofregamente um dinheiro, de trocado em trocado, migalha a migalha, para comprar aquele então caríssimo CD, correndo na contramão da emergente pirataria. Ficava por meses a fio ouvindo apenas aquele álbum, acompanhando as letras pelo encarte de maneira que elas grudassem no cérebro. Atualmente, a dificuldade se encontra no fato de se manter fiel a uma banda ou estilo musical. Ao abrir o caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, ou a revista Rolling Stone, uma enxurrada de bandas que prometem ser interessantíssimas me é apresentada. O resultado: baixo tudo, não ouço nada.

Como não tinha videocassete e o DVD ainda não existia, minha filmografia era baseada em Sessão da Tarde e Tela Quente. Ficava maluco esperando por aquele filme dublado anunciado meses antes de ser transmitido. Chegar à escola sem ter assistido O Grande Dragão Branco, com o lendário Jean-Claude Van Damme, que havia passado no período vespertino do dia anterior, era o maior dos crimes. Agora, não é preciso ser um grande entendedor de informática pra baixar o filme que quiser em poucos minutos. Precisei comprar um HD externo, dada a quantidade de filmes baixados, dos quais, claro, poucos foram vistos.

No início de minha adolescência, esperava ansiosamente pela chegada mensal de cinco gibis da DC Comics, frutos de uma assinatura dada como presente por uma bendita tia. Devorava tudo em menos de dois dias. Na expectativa da chegada do mês seguinte, relia todas as edições. Hoje, a facilidade para comprar online e a variedade de títulos é tamanha, que há várias histórias em quadrinhos encalhadas em minha prateleira, esperando pelo longínquo dia no qual serão lidas.

Nessa mesma estante, obras literárias também se encontram em uma crescente fila de espera. Os culpados, além do meu consumismo literário compulsivo, são os botões virtuais “compre com 1 clique” das livrarias Cultura e Saraiva. Bons tempos aqueles em que eu só lia livros da biblioteca da escola, a maioria da saudosa Coleção Vaga-Lume. Lembro-me de ter lido o drama dos cortadores de cana no romance Açúcar amargo, da autoria de Luiz Puntel, umas três vezes seguidas. Também me deliciei, entre um livro e outro, com releituras do misterioso O escaravelho do diabo, escrito por Lúcia Machado de Almeida. Os volumes apresentavam capas com bordas gastas, tamanha era a rotatividade das edições. Dá certa amargura ver tantos livros novos, intocados, com as páginas brancas, parados aqui em minha pequena biblioteca.

O foco talvez seja um dos maiores dramas desses tempos tão modernos e cibernéticos. Ler, ver e ouvir tanta coisa, ao mesmo tempo, é o mesmo que ser, de uma só vez, católico e protestante, são-paulino e corintiano, nazista e judeu.

Ou seja: dá errado.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Um mês noir e brutal

Texto publicado no blog Caneta Tinteiro.

Ano: 1954. O Brasil passa por um período complicado politicamente, em que as incertezas a respeito de seu presidente fazem com que militares ameacem tomar o poder, políticos analisem melhores posições a serem tomadas e amigos virem as costas àquele que um dia os acolheu e enriqueceu.

Este é o cenário presente no romance Agosto, o quinto da carreira do contista, romancista e roteirista Rubem Fonseca, lançado em 1990. Trata-se de uma narrativa policial histórica, na qual personagens fictícias se misturam às personalidades e acontecimentos reais que marcaram a queda e o suicídio de Getúlio Vargas.

O narrador apresenta Vargas, outrora respeitado e temido ditador, completamente depressivo, derrotado e traído por seus comparsas. Estes fatores facilitaram o ataque do deputado e jornalista Carlos Lacerda, conhecido como "O Corvo", principal opositor do governo vigente. Querendo calar a voz desta ave necrófaga, Gregório Fortunado, "O Anjo Negro", então responsável pela segurança do presidente, trama o assassinato de Lacerda, plano que acaba fracassado, tornando-se um tiro no próprio pé.


O protagonista fictício desta história é o comissário Alberto Mattos, representado pela figura de um herói decadente. Melhor aluno de sua turma no curso de Direito, é um dos únicos policiais que não aceita suborno dos bicheiros e cumpre os trâmites da lei à risca. Seu estômago não suporta a sujeira do submundo carioca e Mattos é obrigado a conviver com uma úlcera no duodeno, que o atormenta juntamente com implacáveis questionamentos existenciais.
Alberto Mattos, assim como os sujeitos amontoados nas minúsculas celas de seu distrito, é um fodido. Questiona-se o tempo todo se vale a pena cumprir um sistema legislativo tão complexo e desfavorável aos que estão à margem da sociedade. Alice e Salete, mulheres igualmente descontentes com o mundo em que vivem, são as paixões de sua vida mal resolvida, que o impede de decidir por qual amor escolher.

Ao publicar Agosto, Fonseca sofisticou um gênero pulp, pois uniu detalhada pesquisa histórica a uma narrativa rápida, refinada e poética, compondo algo que ultrapassa a definição de roman noir.