domingo, 27 de outubro de 2013

Contradição divina. Hipocrisia diabólica.

 
Artigo publicado em 29 de setembro de 2013 no Homo Literatus.

Como seria uma igreja fundada pelo pior e mais clássico inimigo de Deus?

Machado de Assis, com seu imaginário crítico e irônico, construiu esse absurdo e cômico cenário no conto A igreja do Diabo, publicado pela primeira vez na Gazeta de Notícias, em 12 de fevereiro de 1883. Esta pequena narrativa, dividida em três capítulos, mostra a complexa natureza humana, cada dia mais incompreensível.

O Diabo decide fundar seu próprio templo com a justificativa de que, apesar do aumento das maldades no mundo e de súditos em seus domínios, não havia nenhum tipo de regra ou ritual que regularizasse os atos daqueles que cometiam barbaridades. Ao contrário das outras igrejas, que se dividiram e guerreiam por um mesmo segmento, a sua seria mais forte, de núcleo único.

Sua igreja possui seus próprios fundamentos, nos quais diversas atitudes consideradas imorais pelas premissas divinas são questionadas. Afinal, as regras constituídas por Deus nunca definiram de maneira clara o que seria bom ou ruim. Se posso vender meus bens materiais, como minha casa, porque não poderia comercializar meu voto? Se um carro pode ser comprado, porque os indivíduos julgados pelo mensalão não poderiam comprar veredictos favoráveis? Contradição divina. Hipocrisia diabólica.

O próprio Satanás se define como o senhor da objeção.  A humanidade se prova ainda mais incoerente. Ao integrar-se à diabólica igreja, o sujeito tem total liberdade para praticar os sete pecados capitais, sem reprimendas. Porém, o homem sente grande necessidade de transgredir, burlar às escuras, um sistema de regras.

Viver regrada ou abusivamente? O que, afinal, o ser humano quer? Viver de maneira correta, sem excessos, dividindo ganhos com os menos favorecidos, sacrificando-se por um ente querido para, no final de sua vida, obter uma morte jubilosa seguida de merecido e eterno descanso no paraíso?

O avarento deixa de ser pão-duro e torna-se econômico. O guloso resolve dividir suas iguarias. O preguiçoso quer trabalhar. Ao final de sua jornada, nem o Diabo consegue lidar com tamanha complexidade. Somente Deus e sua infinita paciência conseguem lidar com os absurdos comportamentos de suas crias.

Fica a dúvida de qual teria sido, há 105 anos, o destino de Machado de Assis.