terça-feira, 30 de abril de 2013

"Max e os Felinos": a armadilha literária de Scliar

O sucesso de bilheteria e crítica do filme As aventuras de Pi, dirigido pelo cineasta Ang Lee, ressuscitou uma antiga discussão que era por muitos desconhecida. O longa é baseado no romance do canadense Yann Martel. A trama mostra o menino que passa um longo período a bordo de uma jangada, tendo como única companhia a figura de um gigantesco tigre.

O problema é que, para conceber sua mirabolante história, Martel baseou-se na ideia do escritor brasileiro Moacyr Scliar (1937 - 2011), que já havia escrito uma pequena novela, na qual um garoto convive por certo tempo, em um minúsculo escaler, junto de um jaguar. Na opinião de muitos, plágio.

Para piorar, quando seu livro foi lançado, o canadense criticou a trama imaginada pelo gaúcho, dizendo ser uma ideia muito boa, porém pouco trabalhada. O brasileiro, apesar de dizer não ter se importado, foi desmentido por seu ex-editor Luiz Schwarcz, em recente artigo publicado no Blog da Companhia das Letras.

Então, por conta dessa polêmica reavivada, cheguei ao livro inspirador da obra literária que foi adaptada para o filme hollywoodiano. Max e os Felinos trata da história do jovem alemão Max Schmidt, que é obrigado a deixar seu país com destino ao Brasil por conta da ascensão do partido nazista. Ele não era de família judia, mas envolveu-se com a mulher de um membro do partido. 

Contudo, os temores de Max não estavam relacionados apenas com os futuros causadores da Segunda Guerra Mundial. Seu pai era dono de uma loja de pelagens, onde havia um imenso Tigre de Bengala empalhado, fruto de uma caçada bem sucedida. A figura do gigantesco felino é um trauma de infância que o atormentaria pelo resto de sua vida.

Durante sua fuga, o navio que o levava para a América do Sul acaba por naufragar. O jovem alemão consegue escapar ao embarcar em um remanescente escaler. Além dele, a embarcação tinha como passageiros animais supostamente destinados a um zoológico a ser montado no Brasil.  Inusitadamente, um jaguar sobrevive ao naufrágio e pula para o pequeno barco ocupado pelo garoto, que é obrigado a usar de diversos artifícios para não ser devorado pelo selvagem predador.  
  
Max não sucumbe ao jaguar. Chega ao Brasil, envelhece e constrói seu espaço. Porém, à medida que o tempo passa, surgem, tanto para o protagonista  quanto ao leitor, inquietantes dúvidas: Max realmente viajou na companhia de um jaguar? Não teria sido o animal apenas produto da conturbada imaginação de um garoto temente a figuras felinas? Qual a espessura da barreira entre real e imaginário? 

Assim como nos livros O centauro no jardim A mulher que escreveu a bíblia, Scliar, com sua fluente narrativa, mostra toda a riqueza e criatividade do seu imaginário. Cabe ao leitor, por meio da aparente simplicidade presente na trama narrada em Max e os Felinos, responder a tais questões e não cair não nas armadilhas literárias de Moacyr Scliar.

Afinal, em nossas mentes, todos nós temos nossos próprios e ferozes felinos.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Quinze dias

O escritor Milton Hatoum disse em palestra que escreve uma crônica por mês, pois não dá conta de fazê-lo de maneira forçosa com periodicidade menor que essa. Segundo ele, durante vinte e dois dias, uma idéia sobrevoa sua cabeça, até que, no vigésimo terceiro, o cronista “cata” esse pensamento tal fosse uma mosca, senta e escreve.

O romancista e jornalista Rubem Mauro Machado diz que só escreve munido de uma idéia precedente ao texto, sendo impossível concretizá-lo se a mesma já não estiver constituída. O silêncio também é algo imprescindível em sua atividade criativa.

Tony Bellotto só consegue escrever suas narrativas policiais pela manhã, quando sua mente está descansada e cheia de vigor. Depois desse período, a turbulência do dia-a-dia torna a produção literária praticamente impossível.

Moacyr Scliar era uma máquina de produzir estórias. Mesmo em um saguão de aeroporto lotado, enquanto esperava por seu vôo, ao gaúcho bastava apenas sentar e abrir seu notebook sobre as pernas que as palavras pululavam para a tela digital.

Marçal Aquino afirma só fazer literatura em cadernos manuscritos. Anota todas as idéias que de supetão lhe vêem à mente em pequenos pedaços de papel, que são cuidadosamente guardados, até o momento de serem agrupados e formarem uma excelente narrativa.

Para manter um período de regular criação, eu, leitor assíduo dos textos da autoria dos sujeitos acima citados, resolvi acatar a um bocado de cada técnica ritualística. Escrever é uma das atividades que me causam mais sofrimento e prazer, pois meu processo de criação passa pela caneta tinteiro ou lapiseira, em um rascunho, antes de o resultado final chegar à tela do computador. É como se essa dolorosa labuta servisse para eu mostrar a mim mesmo que estou vivo e ainda ajo como ser pensante (mesmo quando as idéias estão embaralhadas e se transformam em nada).

A partir dessa data, esse espaço passa a ser atualizado quinzenalmente, às quartas-feiras, com o intuito de que as idéias sejam trabalhadas e revisadas com vagar e tranqüilidade (será?) e os textos aqui publicados valham a pena serem lidos.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Arquiteta engenhosa e traiçoeira

O sono bem dormido, aproveitado e profundo sempre foi algo pregado como essencial para a saúde da humanidade. Indiferente a explicações teóricas e freudianas, esse período de imersa e confortável penumbra torna-se, às vezes,  prazeroso ou agitado, conforme as situações que se passam em nossa cabeça, guiadas por algo perdido em nosso secreto subconsciente.

Como mostra o filme A Origem, dirigido por Christopher Nolan, o tempo cronológico dos sonhos é diferente do vivido aqui, no plano terreno, se é que posso assim me referir a essa linha temporal convencional. Uma década pode representar apenas dez horas de sono, cinco horas podem representar alguns minutos de um cochilo pós-almoço, até sermos acordados por um chute, algo como uma sensação de queda, o que faz total sentido, pois, afinal, quem nunca acordou a após ter a impressão de tropeçar e cair no vazio? E o que aconteceria caso nunca fôssemos acordados? Cairíamos em um inescapável limbo, enquanto nossos corpos e mentes definhariam feito vegetal.

Na clássica série de histórias em quadrinhos Sandman, Lorde Morpheus, o Senhor dos Sonhos, irmão caçula da Morte, vaga através dos sonhos de todos os que habitam sobre esse planeta. Ele não somente viaja por imaginações perturbadas por pesadelos como também visita os recantos mais sórdidos criados pela crença humana, como o Inferno, dirigido por Lúcifer. Para algumas pobres almas, sonhar é o ato que mais os aproxima de estarem vivos, de viverem num mundo melhor. Esse mundo fictício, criado por Neil Gaiman e representado pelo traço de diversos artistas, não se distancia muito do nosso.

Quem nunca se decepcionou ao acordar e se dar conta de que voltou a uma realidade perturbadora? Enfureceu-se, pois estava vivendo em mundo perfeito, onde todas as máscaras sociais e identidades secretas não mais seriam necessárias, pois tudo estava arrumado e arranjado para dar certo, sem dramas ou esforço, engrenagens bem encaixadas e sistema calibrado?

Culpa de nossa terrível e criativa mente, arquiteta engenhosa e traiçoeira. Deve-se ter cuidado com o que se deseja, pois ela é inventiva ao ponto de criar um universo enquanto dormimos, totalmente indefesos e desprovidos de controle sobre nossos atos. Aí, haja força de vontade para voltar a encarar esse mundo que, talvez, seja real.