quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Uma colcha de retalhos que se descostura


Texto publicado em 25 de setembro de 2013 no Homo Literatus.

Reconheço-me como um adorador de livros. Além de venerá-los e consumi-los de maneira compulsiva, gosto muito de pesquisar a respeito de obras literárias.

Apesar disso, descobri, na faculdade, que há um elemento que muitas vezes deixa essa atividade um tanto quanto monótona. Tudo o que meros mortais como eu desejamos falar a respeito de determinados autor e obra, devemos recorrer a crítico e texto consagrados, ou seja, ao cânone.

Personagens, enredo, foco narrativo, enfim, ponderar sobre cada elemento, todo tijolo que foi utilizado e considerado pelo escritor até ver sua obra pronta. Então, para fugir do rigoroso sistema acadêmico, descobri uma forma prazerosa de escrever sobre aquilo que li.

Uma resenha bem estruturada pode ser tão boa quanto a narrativa da qual está tratando. O crítico explora subjetivamente o livro lido, fazendo um recorte daquilo considerado essencial na trama, expondo suas sensações particulares, que depois podem ser confrontadas com a de outros leitores, criando-se um grande círculo vicioso. Isto gera a possibilidade de debates. A divergência de pensamentos é o que consagra uma obra.

Um excelente exercício propiciado por essa atividade é a identificação de intertextualidades. Muitos escritores bebem em fontes clássicas e sutilmente as incorporam em seu texto.

É o que fizeram Rubem Fonseca, com o protagonista de suas narrativas policiais Paulo Mandrake, livremente inspirado no detetive Phillip Marlowe, de Raymond Chandler, e Machado de Assis, que elaborou a eterna dúvida a respeito da fidelidade de Capitu na cabeça do pobre Bentinho, pautado na peça Otelo, assinada por Shakespeare. As possibilidades comparativas são inesgotáveis.

Saindo do território literário e indo até à sétima arte, é impossível não pensar em Quentin Tarantino, apontado como um liquidificador de cultura pop, criador de personagens como Django e Jackie Brown, inspirados, respectivamente, em figuras dos estilos western e blaxploitation.

O livro deve ser encarado como um mosaico ideológico, uma colcha de retalhos que se descostura com o intuito de intrigar, instigar e, acima de tudo, humanizar seu leitor.

O balancete de Martin Santomé


Texto publicado em 21 de setembro de 2013 na Obvious.

Acordar, trabalhar, comer, sobreviver. Escrito em forma de diário, A Trégua, do uruguaio Mário Benedetti, mostra a trajetória de um homem resignado à rotina diária, que flutua sobre uma zona de conforto da qual não abre mão. 

Protagonista e narrador de seu cotidiano, Martin Santomé é o relator dos dias que antecedem sua aposentadoria. Em meio a uma crise de meia-idade, ele teme ao ócio iminente, que o arrancará de seu repetitivo e monótono cotidiano laboral. 


Seus hábitos são encarados como algo que o blinda de frustrações. Qualquer evento que saia disto trás certo desequilíbrio emocional, por isso, Santomé, viúvo e pai de três filhos, junto à mesa do escritório ou de um café, vive dias automáticos, que remetem à mecânica maneira como realiza seu trabalho de contador: “Hoje foi um dia feliz. Só rotina.”

Sujeito que se dá muito bem com a contabilidade, tem extrema dificuldade em se relacionar com seus próximos. Dedica-se a coisas exatas, ignorando a complexidade das existências que o cercam. O sexo é uma atividade de prazer momentâneo, enquanto a vida em família se compõe de relações conflituosas, já que ele não sabe e nem quer exercer seu papel de pai. As antigas amizades são, em sua maioria, algo que não deixou nenhum tipo de saudosismo.


Suas anotações diárias mostram que, por trás de cada rosto impassível, sorridente ou amargurado, há a frequente e ininterrupta sucessão de pequenas desgraças cotidianas. As rotinas paralelas se entrelaçam, cada qual com seu mundo sombrio e particular.

 As chances ilusórias de Martin Santomé, promessas de felicidade, são dadas por Isabel e Avellaneda, as mulheres de sua vida. Cada oportunidade constitui um abrupto e traumático rompimento cíclico, que é seguido de indagações sobre a existência de um deus/Deus perverso e manipulador. 

Martin Santomé, metódico contador, faz um balancete existencialista de sua biografia automatizada, desprovida de sentimentos. Quando ele finalmente redescobre o que é sentir algo, um golpe fatídico tira a única coisa boa de seu calculado e inexato dia-a-dia.

Compre com 1 clique


Texto publicado em 14/09/2013 no Homo Literatus. 

Ao raro leitor, que esta página acaba de acessar, faço a seguinte pergunta: é a única janela aberta em seu navegador? Muito provável que a resposta seja negativa, pois essa tal de rede mundial dos computadores oferece tantas possibilidades informativas que fica difícil ater-se apenas a uma.

Sinto saudade do tempo em que juntava sofregamente um dinheiro, de trocado em trocado, migalha a migalha, para comprar aquele então caríssimo CD, correndo na contramão da emergente pirataria. Ficava por meses a fio ouvindo apenas aquele álbum, acompanhando as letras pelo encarte de maneira que elas grudassem no cérebro. Atualmente, a dificuldade se encontra no fato de se manter fiel a uma banda ou estilo musical. Ao abrir o caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, ou a revista Rolling Stone, uma enxurrada de bandas que prometem ser interessantíssimas me é apresentada. O resultado: baixo tudo, não ouço nada.

Como não tinha videocassete e o DVD ainda não existia, minha filmografia era baseada em Sessão da Tarde e Tela Quente. Ficava maluco esperando por aquele filme dublado anunciado meses antes de ser transmitido. Chegar à escola sem ter assistido O Grande Dragão Branco, com o lendário Jean-Claude Van Damme, que havia passado no período vespertino do dia anterior, era o maior dos crimes. Agora, não é preciso ser um grande entendedor de informática pra baixar o filme que quiser em poucos minutos. Precisei comprar um HD externo, dada a quantidade de filmes baixados, dos quais, claro, poucos foram vistos.

No início de minha adolescência, esperava ansiosamente pela chegada mensal de cinco gibis da DC Comics, frutos de uma assinatura dada como presente por uma bendita tia. Devorava tudo em menos de dois dias. Na expectativa da chegada do mês seguinte, relia todas as edições. Hoje, a facilidade para comprar online e a variedade de títulos é tamanha, que há várias histórias em quadrinhos encalhadas em minha prateleira, esperando pelo longínquo dia no qual serão lidas.

Nessa mesma estante, obras literárias também se encontram em uma crescente fila de espera. Os culpados, além do meu consumismo literário compulsivo, são os botões virtuais “compre com 1 clique” das livrarias Cultura e Saraiva. Bons tempos aqueles em que eu só lia livros da biblioteca da escola, a maioria da saudosa Coleção Vaga-Lume. Lembro-me de ter lido o drama dos cortadores de cana no romance Açúcar amargo, da autoria de Luiz Puntel, umas três vezes seguidas. Também me deliciei, entre um livro e outro, com releituras do misterioso O escaravelho do diabo, escrito por Lúcia Machado de Almeida. Os volumes apresentavam capas com bordas gastas, tamanha era a rotatividade das edições. Dá certa amargura ver tantos livros novos, intocados, com as páginas brancas, parados aqui em minha pequena biblioteca.

O foco talvez seja um dos maiores dramas desses tempos tão modernos e cibernéticos. Ler, ver e ouvir tanta coisa, ao mesmo tempo, é o mesmo que ser, de uma só vez, católico e protestante, são-paulino e corintiano, nazista e judeu.

Ou seja: dá errado.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Um mês noir e brutal

Texto publicado no blog Caneta Tinteiro.

Ano: 1954. O Brasil passa por um período complicado politicamente, em que as incertezas a respeito de seu presidente fazem com que militares ameacem tomar o poder, políticos analisem melhores posições a serem tomadas e amigos virem as costas àquele que um dia os acolheu e enriqueceu.

Este é o cenário presente no romance Agosto, o quinto da carreira do contista, romancista e roteirista Rubem Fonseca, lançado em 1990. Trata-se de uma narrativa policial histórica, na qual personagens fictícias se misturam às personalidades e acontecimentos reais que marcaram a queda e o suicídio de Getúlio Vargas.

O narrador apresenta Vargas, outrora respeitado e temido ditador, completamente depressivo, derrotado e traído por seus comparsas. Estes fatores facilitaram o ataque do deputado e jornalista Carlos Lacerda, conhecido como "O Corvo", principal opositor do governo vigente. Querendo calar a voz desta ave necrófaga, Gregório Fortunado, "O Anjo Negro", então responsável pela segurança do presidente, trama o assassinato de Lacerda, plano que acaba fracassado, tornando-se um tiro no próprio pé.


O protagonista fictício desta história é o comissário Alberto Mattos, representado pela figura de um herói decadente. Melhor aluno de sua turma no curso de Direito, é um dos únicos policiais que não aceita suborno dos bicheiros e cumpre os trâmites da lei à risca. Seu estômago não suporta a sujeira do submundo carioca e Mattos é obrigado a conviver com uma úlcera no duodeno, que o atormenta juntamente com implacáveis questionamentos existenciais.
Alberto Mattos, assim como os sujeitos amontoados nas minúsculas celas de seu distrito, é um fodido. Questiona-se o tempo todo se vale a pena cumprir um sistema legislativo tão complexo e desfavorável aos que estão à margem da sociedade. Alice e Salete, mulheres igualmente descontentes com o mundo em que vivem, são as paixões de sua vida mal resolvida, que o impede de decidir por qual amor escolher.

Ao publicar Agosto, Fonseca sofisticou um gênero pulp, pois uniu detalhada pesquisa histórica a uma narrativa rápida, refinada e poética, compondo algo que ultrapassa a definição de roman noir.