sábado, 22 de dezembro de 2012

Ficçãozinha V

Aquilo já estava o irritando. Todo mundo falando daquela merda, como se nada antes daquilo houvesse existido. Não havia escapatória. Quando ligava o computador e acessava seus jornais favoritos, a manchete em destaque era sempre aquela. Nas redes sociais, então, nem se fala. As pessoas gostam de mostrar o quanto são medíocres quando uma nova febre desponta em seus medíocres e malditos cotidianos.

Desligou o computador. Uma caminhada talvez o ajudaria. Saiu para a calçada, sentindo os implacáveis e infernais raios solares virem de encontro à sua cabeleira. Antes de chegar à esquina já sentia as gotas de suor escorrerem por seu couro cabeludo até chegarem à sua nuca, seu pescoço, seu rosto. Duas pessoas, adolescentes, andavam com vagar a sua frente. Diferentemente do ritmo de seus passos, a conversa fluia com peculiar entusiasmo. O assunto: aquele. Davam opiniões. Um acreditava , outro não, um achava isto, o outro aquilo. 

Isso, somado ao calor infernal e às gotas de suor que haviam se transformado em jorros que encharcavam sua camiseta, começou por irritá-lo. Achou que uma cerveja seria um bom remédio. Parou num bar. Pediu a cerveja, que lhe foi colocada à sua frente, com um copo do tipo americano ao lado da garrafa. Sabia que ali, naquele balcão repleto de boêmios, o assunto não seria abordado. Deu um gole naquele saboroso líquido gelado. Seu humor começara a melhorar. Quando achava que seu dia estava a salvo, eis que entra outro freguês, pede uma dose e inicia uma conversa com o dono do bar. O tema? Aquele.

Ele não podia acreditar. Pagou e saiu dali sem terminar a garrafa. Foi direto pra casa, trancou-se em seu quarto, isolou-se do mundo. Só queria que aquela data chegasse, passasse logo e que as pessoas voltassem a falar sobre futebol, política, religião e outras futilidades, como sempre faziam. Pensou se aquele absurdo realmente acontecesse. Visualizou os ateus, aqueles que sempre se mostraram destemidos, ingratos pela boa vida que têm, sendo os primeiros a clamar por um deus que sempre desafiaram apenas para se mostrarem polêmicos. Imaginou como se mostrariam na verdade uns idiotas, uns cagões, uns bundões, uns frouxos.

O dia chegou. Afora o calor insuportável, fruto das violentas investidas do homem contra a natureza, tudo estava normal. As pessoas foram trabalhar, ligaram sua televisão, falaram mal da vida alheia, roubaram, mataram, trapacearam, comeram, sujaram, cagaram. A terra não explodiu. Nenhum planeta colidiu com ela. Não houve chuva de meteoros ou água. Ele ligou seu computador. Os assuntos nos jornais e redes sociais já eram outros. Um político que roubou, foi condenado, mas não pode ser preso. Uma jovem vítima de bala perdida teve um funeral com caixão fechado, pois já não havia cabeça acima de seu pescoço. Uma passagem de ônibus que terá novo e absurdo aumento. Um país assolado pela fome em plena guerra civil. Um jornal de respeito preocupado com o fato de uma atriz ter parado de seguir um galã de Hollywood em uma rede social.

Ele elevou sua xícara de café fresco até seus lábios e deu um gole. O café estava particularmente bom naquela manhã. Coçou a cabeça. Olhou para o nada. Pensou. Respirou. Perguntou-se: será que o mundo não acabou de fato?   

domingo, 16 de dezembro de 2012

Rabugento e humano

Um homem que não se encaixa às mudanças sofridas pelo mundo em que vive. É uma constante que já virou senso comum. Muita gente que nasceu nessa era diz ter saudades de um tempo em que não viveu. A dificuldade para se adaptar a um cotidiano em que tudo se renova a cada segundo é evidente.

Clint Eastwood incorpora esse sujeito em crise com as novas e violentas tendências através de sua personagem, o polaco e veterano de guerra Walt Kowalski, no longa dirigido por ele próprio, Gran Torino. Depois do falecimento de sua mulher, Kowalski se vê acompanhado apenas de sua cadela, Daisy, e às voltas com vizinhos de diferentes etnias, cujos costumes não se adequam aos seus, além de gangues que vandalizam e desrespeitam o bairro em que vive.

Kowalski não se conforma com a petulância dos jovens que habitam os arredores de sua casa. Adolescentes destratam pessoas mais velhas e caçoam de suas mentalidades conservadoras. Em sua própria família ele enfrenta problemas com seus filhos e netos, que se mantêm à distância por considerarem Kowalski um velho rígido, intolerante e reacionário. A aproximação só é feita quando possuem algum tipo de interesse que possa ser adquirido com a intervenção do velho. Outro sinal dos novos e descabidos tempos.

Um desses interesses é o belo Ford Gran Torino 1972 por ele conservado na garagem. Grande patriota que é, Walt detesta carros importados de outros países e cultua produtos fabricados nos Estados Unidos. A Ford, empresa na qual trabalhou por muito tempo, é um símbolo dessa veneração. O Gran Torino é a menina dos seus olhos, o qual conserva com extremo zelo. O clássico e impecável automotor é o elo de ligação entre Kowalski e o menino Thao, um dos imigrantes asiáticos que habitam sua vizinhança, ao qual o velho rabugento adota como protegido e discípulo.

É muito difícil julgar se uma obra é o reflexo da vida do autor. Porém, nas últimas eleições americanas, Eastwood mostrou-se um ferrenho republicano, atacando o presidente eleito Barack Obama em uma aparição na qual apontava e conversava com uma cadeira vazia, como se o democrata estivesse ali sentado, ouvindo um sermão. Em Gran Torino, apesar de exibir preconceito contra culturas diferentes, a personagem de Eastwood na verdade acaba mesmo por pregar que haja respeito entre as pessoas, sejam elas democratas, republicanas, jovens ou idosas.

Eastwood, que já foi violento e irreverente como pistoleiro do velho oeste e policial inescrupuloso, mostra em Gran Torino seu lado rabugento e humano. Pois o respeito deve ser mantido - apesar das mudanças.     

sábado, 8 de dezembro de 2012

Ano um

Há um ano, inaugurava eu esse espaço no qual pretendia exercer e praticar essa dura tarefa de escrever regularmente sobre coisas variadas. Falar sobre isso pode parecer mais do mesmo para os poucos que aqui acompanharam minhas postagens, mas, de fato, nesse ano que se passou, só foi reafirmado meu prazer em escrever de maneira jornalística sobre manifestações artísticas que fazem meus dias mais, digamos, aproveitáveis.

A intenção nunca foi exibir algum tipo de volume intelectual ou coisa parecida, nada disso. Há uma cena no filme Sociedade dos poetas mortos que ficou marcada em minha mente: alunos daquele internato, em uma cerimonia, com velas em punho, vão acendendo com a chama da sua o pavio do colega ao lado, dando a entender que a passagem de conhecimento não diminui a quantidade de experiências daquele que ensina. É isso. Meu objetivo sempre foi fazer indicações de coisas que eu achava interessantes. Sinto um grande prazer quando vejo nos comentários alguém que coloca em suas prioridades algum livro sobre o qual comento. Isso é uma forma de combustível que me dá ânimo a continuar escrevendo para um escasso, porém, prezado público.

Esse tempo foi bom para evoluir em vários aspectos. Conversei com jornalistas e blogueiros que me deram dicas de como fazer um texto mais atraente, além de conhecer blogs de pessoas que só querem, assim como eu, sobreviver algum dia apenas da escrita. Sinto que, quando tomamos a iniciativa de criar um espaço para escrever sobre coisas variadas, queremos sair do tédio cotidiano, sentir-nos úteis, produtivos e satisfeitos com algo que gostamos de fazer. Cada seguidor novo é uma vitória. Cada comentário, seja ele exposto na página do texto ou  feito pessoalmente, é um sentimento de dever cumprido. Esse retorno é, de fato, muito gratificante.

A regularidade das postagens também sempre foi um grande obstáculo. Tentei mantê-lo com frequência dominical, mas outros afazeres mais urgentes ficavam em primeiro plano. Infelizmente, tive que deixar o Donnerwetter! de lado para me dedicar aos compromissos da vida. Espero, sinceramente, voltar a estabelecer uma regularidade mais profissional de postagens.

Critiquei as redes sociais, as séries de TV, as pessoas, o mundo. Revi meus conceitos, assumi meus erros. Hoje, se não sou um viciado, acompanho com prazer duas séries e busco informações a respeito de outras. E estou certo de que se não fossem as redes sociais, o Donnerwetter! seria conhecido por um grupo ainda menor de pessoas. Através de Twitter e Facebook, divulguei e consegui um pequeno e estimado retorno. A flexibilidade "ideológica" mostrou-se ser algo importante. 

Manter esse espaço ativo foi a porta de entrada para que eu escrevesse a serviço de outras pessoas. Escrevi artigo para a revista eletrônica Headphone, mantida por minha amiga, poeta e contista Nalú Souza. Estreei recentemente como resenhista literário para o site Contraversão, do editor e quadrinista Raphael Fernandes. Acredito que se o Donnerwetter! não existisse, talvez eu não seria convidado pela Nalú ou aceito pelo Raphael em sua trupe altamente qualificada. Essa coisa de cumprir prazos, adequar o texto a uma revisão, corrigir erros, ser congratulado por acertos, enfim, são experiências que muito me serão  muito úteis.
 
Enfim, o Donnerwetter! completa seu primeiro ano de vida que, espero, seja seguido por muitos outros. Agradeço aqui a todos os que,  seja apenas por amizade ou mesmo por um interesse verdadeiro pelo que foi escrito, contribuiram com suas visitas e comentários para que eu continuasse a buscar assuntos sobre os quais escrever e manter minha mente sempre ativa.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Ainda sobre as séries

Em outro texto publicado nesse espaço, intitulado Uma arte menor, discutia e duvidava eu a respeito da qualidade e valor artístico das séries. Durante um bom tempo as julguei (preconceituosamente, talvez) como meros enlatados estrangeiros que éramos obrigados a aceitar goela abaixo. Bem, o tempo passou (já se vão quatro meses desde que o texto acima referido foi escrito), conversei com mais pessoas, abri a mente para novas possibilidades e pronto: fui fisgado por uma série, recomendada por uma amiga. Com isso, cheguei à conclusão de que realmente há temas para todos os gostos. Sim, ainda me interesso pela temática de House e Dexter, mas a junção de um ator que remete aos pontos máximos da filmografia de Quentin Tarantino a um assunto interessantíssimo fizeram com que Lie to me passasse a fazer parte do meu cotidiano.

O carismático protagonista Dr. Lightman é interpretado impecavelmente por Tim Roth (foto), que fez participações memoráveis nos filmes Pulp Fiction e Cães de aluguel. Lightman é dono de uma agência que soluciona mistérios através do desvendamento das mentiras que as pessoas contam. Reconhecido estudioso, ele possui uma equipe de verdadeiros detectores de mentiras ambulantes, que decifram inimagináveis micro-expressões que o ser humano involuntariamente apresenta quando tenta encobrir algo.

E não foi apenas esse ambiente detetivesco que me cativou. Até aqui, nos nove capítulos da primeira temporada aos quais assisti, tomei conhecimento de variados comportamentos culturais que remetem a diferentes etnias e países. Tudo foi trabalhado de maneira competente para que todos os detalhes levassem à inesperada solução de cada caso. Definir como empolgante, seria pouco.  A única coisa que lamento: foram produzidas apenas três temporadas, que vão de 2009 a 2011. Uma pena.

Então, reitero-me aqui perante aqueles que leram o fatídico texto em que eu crucificava esse gênero no qual venho despendendo considerável tempo. Seria uma falácia eu continuar a insistir na ideia de que se trata de algo de menor valor artístico quando comparado à literatura, ao cinema ou aos quadrinhos. Ah, e não pensem que deixei de ler ou ver filmes. Continuo a fazer tudo isso. Essa série veio apenas somar ao entretenimento de minhas horas vagas.

Recomendo Lie to me para todos que ainda se acanham em acompanhar um seriado. E, por falar nisso, lá vou eu para mais um episódio.

domingo, 21 de outubro de 2012

Bom como um beijo de femme fatale

Como já mencionei inúmeras e exaustivas vezes por aqui, durante o ano, fica difícil para quem gosta de ler encontrar tempo para fazê-lo com a quantidade de afazeres relacionados a trabalho e estudo. Obras muito cerebrais são um convite ao sono. Então, as narrativas dinâmicas, porém, de qualidade, são as melhores pedidas para se degustar no ônibus ou em momentos raros de descanso.

Os romances policiais de Raymond Chandler, ambientados nos Estados Unidos economicamente quebrados das décadas de 30 e 40, presenteiam seus leitores com uma gama de personagens e tramas cativantes, que prendem do início ao fim. No romance “A dama do lago”, de 1943, não é diferente.

O detetive que nada sabe sobre técnicas investigativas, durão e sedutor Philip Marlowe, protagonista das histórias de Chandler, mais uma vez é envolvido em um caso complexo e recheado de reviravoltas. Contratado por Derace Kingsley, um figurão da proibida cidade de Los Angeles, para descobrir o paradeiro de sua mulher, Marlowe se vê em uma teia de acontecimentos que abrange corruptos, enganadores, improváveis inocentes e femme fatales. No rastro de Crystal, bela e loura esposa foragida de Kingsley, que supostamente teria fugido com Chris Lavery (um ex-funcionário do marido), Marlowe é obrigado a subir até um rancho de Derace, em Puma Point, onde conhece o simples caseiro Bill Chess.

Chess informa que, assim como no caso de Kingsley, sua mulher, Muriel, também o havia abandonado e desaparecido. Coincidentemente, ambas possuíam os mesmos belos traços pertinentes a uma femme fatale: louras, lindas, charmosas, misteriosas e, claro, fatais. Enquanto conversam, andando ao redor do lago Little Fawn, têm a grata surpresa de encontrar algo particularmente estranho: o corpo de uma linda, loura e charmosa mulher. Era Muriel.

A partir daí, uma investigação complexa e cheia de reviravoltas é conduzida com narrativa competente e inteligente. Personagens caipiras, nativos da província de Bay City, como o tranqüilo e monótono xerife Patton, dão um ar western à trama, o que contribuí ainda mais para a tensão entre mocinhos e bandidos. Em certos momentos, não se sabe exatamente quem é o bom, o mau ou o feio da história. Policiais corruptos e inescrupulosos levam o leitor a duvidar do papel de cada indivíduo na trama.

A já conhecida habilidade de Raymond Chandler em descrever cenários realmente mexe com o imaginário do leitor. Detalhes como um vaso posicionado em certo canto do imóvel, um tapete que dá ar altivo a um escritório ou a penumbra que abrange uma sala criam cenários como os dos clássicos filmes de estética noir, em que o preto e o branco se entrelaçam por suas intensidades. Várias obras de Chandler, aliás, como “O sono eterno”, foram adaptadas para as telonas e tornaram-se grandes clássicos do gênero.

E, claro, não há como passar despercebido pelas celebres frases metafóricas de Marlowe. Para citar um exemplo: ao entrar em um luxuoso edifício e olhar as vitrines, compara essências e perfumes em frascos de vidro adornados por laços de cetim com “garotinhas em uma aula de balé.”

A estética dada pela editora L&PM ao livro propriamente dito é mais um atrativo. A literatura detetivesca americana sempre foi considerada como pulp. Ciente disso, os editores da L&PM, reconhecidamente a maior e melhor editora de livros de bolso do Brasil, deram um belo acabamento artístico à capa, com cores simples, que remetem a essa literatura considerada marginal pelos críticos mais cultos. Uma blasfêmia, em minha opinião.

Para aqueles que gostam de ação e suspense de tirar o fôlego, “A dama do lago” é leitura obrigatória. 

Ou, como talvez Marlowe o classificasse: um romance noir bom como um beijo de femme fatale.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O incrível imaginário de Moacyr Scliar

Uma coisa que sempre me intrigou como leitor é a aparente e inesgotável fonte criativa de alguns escritores. Certos caras realmente me surpreendem pela quantidade de obras providas de indiscutível qualidade que lançam. Acho que a maioria das pessoas apreciadoras de literatura já tentou ou teve a curiosidade de escrever uma ficção, algo pequeno e sucinto que desse gosto em ser lido. Confesso: já tentei várias vezes e não consegui. Talvez a solução seja partir de ideias pequenas, como o próprio Lourenço Mutarelli confessou fazer. Mesmo assim, a coisa não é fácil. 

Por isso sou profundo admirador de Moacyr Scliar (1937 - 2011), um médico não somente do corpo humano, mas também das palavras, que sabia manuseá-las como ninguém. Li certa vez, num texto do Tony Bellotto, que ele conseguia escrever em meio a toda agitação de saguões aeroportuários, enquanto esperava por seu vôo. Era só sentar, colocar seu notebook no colo, ligá-lo e pronto: as ideias jorravam para a tela do portátil.

Fui leitor assíduo de seus textos na Folha de S. Paulo e acabo de estreá-lo na forma de literatura, através do romance (um puta romance, aliás, como diria a protagonista da história) "A mulher que escreveu a bíblia". Com uma narrativa envolvente, inteligente e, acima de tudo, ágil, a obra me acompanhou por esses dias (poucos, já que, mesmo com escasso tempo para leitura, devorei-a).

Scliar conta a história do mito da mulher que teria redigido os escritos bíblicos. Até aí, tudo bem. Mas o modo como ele narra o cotidiano da mulher extremamente feia e faminta por sexo adquirida pelo rei Salomão é algo fascinante. Com um vocabulário contemporâneo misturado ao dialeto pertinente à época, o escritor gaúcho mostra sua habilidade, através de sua narradora autodiegética, para criar histórias criativas e mirabolantes, baseadas em mitos e fábulas, que se aproximam dos dias atuais.

As reflexões acerca de seu desejo por certo pastorzinho, o tesão que sente por seu marido (que possui centenas de esposas e concubinas), os planos para conseguir a sua tão sonhada foda, as análises sobre a situação diplomática e política do reino e o seu relacionamento com as outras mulheres do harém de Salomão me arrancaram risos pela absurda relação entre o contexto histórico e os desejos de uma mulher marginalizada por sua feiúra, que é incumbida da escritura do livro sagrado por ser a única alfabetizada (secretamente, diga-se) e detentora de grandes dotes narrativos.

"A mulher que escreveu a bíblia" mostra o quão incrível e inesgotável era o imaginário de Moacyr Scliar. Fábrica de histórias essa que, infelizmente, só teve sua produção interrompida pela morte.

O que, consequentemente, tornou-o um imortal.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Literatura pura e de qualidade

Dos romancistas brasileiros contemporâneos que eu ansiava ler, Milton Hatoum é o que mais me gerava espectativa. Em artigos de jornais e revistas, postagens em blogs literários e no ambiente acadêmico, Hatoum é um nome constante, através da menção de sua obra mais aclamada, o romance intitulado "Dois Irmãos". Porém, não foi por meio desse livro que comecei minha empreitada por seus escritos.
 
"Cinzas do Norte" já estava há alguns meses encaixado em uma pequena fileira de livros alojados em minha estante. Peguei-o para minha prática diária de leitura, que é feita dentro do ônibus da empresa na qual trabalho, no trajeto de volta do percurso. Confesso, já de primeira, que foram entretedores e empolgantes (mesmo sendo eles curtos e fragmentados) momentos literários.  

A história dos amigos Mundo e Lavo é contada numa Manaus historicamente ambientada nos anos de ditadura militar do Brasil. Inicialmente, pode-se pensar que seja um tema batido. Mas esse enredo contribui muito para o andamento da história, que mostra ao leitor os segredos pecaminosos das famílias desestruturadas nas quais os dois amigos de personalidades completamente diferentes cresceram. 

O próprio  Hatoum revela, conforme menciona Irineu Franco Perpetuo no prefácio do livro, que as duas personagens são fragmentos de sua própria personalidade: Mundo, um artista louco que almeja deixar sua terra natal o quanto antes para ganhar outros territórios; Lavo, um indivíduo centrado e ciente de suas obrigações para com seus semelhantes em sua terra.

Ao mesmo tempo em que desenvolve a história  através da voz autodiegética de Lavo, Hatoum faz ferozes e fiéis descrições críticas do então regime político conservador, que invade a casa de Mundo e faz com que seu pai, Jano, viva a mercê dessa cruel e ferrenha doutrina. Mas Hatoum não se atém apenas a esse espinhoso tema. No desenrolar da trama, o leitor absorve grande conhecimento cultural remetente à quente e úmida capital amazonense, que abrange a culinária, o artesanato, as festas e uma infinidade de outras peculiaridades espaciais, como a pobreza e simplicidade das pessoas que habitam as margens dos rios.

Em certa entrevista, o romancista diz que compor romances é um jogo de paciência que exige coragem. Há de se escrever, ler e pesquisar, dia e noite, durante anos, além de ter certa experiência histórica. "Cinzas do Norte" mostra que Hatoum foi paciente e corajoso na medida certa e soube transplantar todo o seu conhecimento sobre Manaus de maneira clara e competente, com uma narrativa forte e envolvente.

"Cinzas do Norte" é literatura pura e de qualidade.