domingo, 23 de setembro de 2012

E o futuro?

Recentemente, adquiri uma das invenções que mais simbolizam a pequeneza portátil que as coisas estão tomando com o avanço da tecnologia. O iPod Shuffle é uma pequena vitrola que pode ser levada a qualquer lugar, discretamente anexada a qualquer parte da vestimenta de quem o utiliza, com fones confortáveis que nos isolam do mundo exterior enquanto fazemos exercícios, lemos um jornal, uma revista, um livro ou simplesmente tiramos um tempo para relaxar e ouvir nossas músicas preferidas em paz. Os fones acoplados aos ouvidos são uma espécie de bloqueio social a qualquer intruso que deseje atrapalhar aquele momento de ócio recreativo.

Em contrapartida, há alguns meses estive a procura de uma vitrola clássica. Não uma vitrola propriamente dita, mas um toca-discos, com caixas de som enormes, que reproduzissem com perfeição os graves e agudos de bandas como Led Zeppelin ou Deep Purple ou Metallica, coisa que nenhum fone de ouvido, por mais moderno que possa ser, conseguiria emitir. Iniciar uma coleção de vinis é algo que me apetece a tempos. Acho bonito uma estante cheia desses objetos clássicos e visualmente atrativos. O problema, no entanto, foi o espaço físico. Não possuo uma área apropriada para acoplar mais uma bugiganga, pois esse pouco espaço disponível já está tomado por livros, papéis, jornais, revistas, quadrinhos, enfim, uma verdadeira esbórnia convidativa a traças e qualquer outro ser que goste de roer papel.

Li, durante essa semana, uma narrativa produzida por uma blogueira em que duas personagens se encontram  em uma livraria. Enquanto a protagonista feminina tomava um café e lia um livro, com fones de ouvido devidamente posicionados em suas orelhas, um rapaz se aproxima e iniciam uma conversa sobre literatura e música. Ele a leva para sua casa com a finalidade de apresentá-la a sua coleção de vinis, já que ela própria possuía uma. O final dessa pequena história todos devem saber.

Essa situação ficcionalmente hipotética me levou a pensar sobre esses hábitos cada vez menos regulares. Colecionar coisas é uma virtude que está ficando cada vez mais no passado. Baixa-se facilmente, com um apertar de botão, qualquer filme ou música que se deseje, gratuitamente, em poucos minutos. De fato, são facilidades que muito ajudam, pois geram uma considerável economia financeira. Mas quem é que vai mostrar uma coleção de arquivos em MP3 ou RMVB a alguém? Quem passará uma tarde inteira tirando o pó e rememorando a aquisição desses itens cibernéticos?

Entre prós e contras, abstrações e coleções, o passado se apresenta como algo cada vez mais distante e poético, o presente com hábitos simples que se tornam cada vez mais raros e singulares e o futuro...

E o futuro?

domingo, 16 de setembro de 2012

Ficçãozinha IV

Tirou a tarde para revirar, arrumar, desfazer-se e organizar velharias. Embora seja um ato simples e teoricamente corriqueiro, sabia que remexer no passado, seja ele material ou abstrato, é uma coisa perigosa. Ainda mais quando se mexe em fotografias, essa arte singular que nos leva a um tempo bom, ruim, alegre, difícil, já distante.

Pais, tios, irmãos, irmãs, primos, primas, tios, tias, amigos. Tudo ia passando por suas mãos, fazendo com que sua expressão mudasse do riso ao cenho franzido a cada imagem envelhecida que seus olhos apreendiam. Quando estava acabando de arrumar tudo, escondida no fundo de uma caixa de sapatos, ela, aquela que participou tão ativamente de sua vida por um (já longínquo) ano, como um soldado oculto que executa uma emboscada, apareceu. E ele sentiu o peso do tiro.

A foto fora tirada em uma antiga boate, popularmente movimentada na época. Cartazes de um refrigerante extinto estavam colados na parte da parede que fazia parte da imagem. Uma garota que por ali transitava fora flagrada no infeliz momento do piscar de olhos. Uma parte do balcão do bar, algumas pessoas de costas, copos de creveja. No centro do cenário, em primeiro plano, ele e ela.

Com as cabeças encostadas uma a outra, sorriam com olhos pequenos que evidenciavam o uso recente de alguns baseados, tão comum na rotina dos então namorados. Ele, com agora ridículos colares, barba e cabelos por cortar, numa tentativa infantil de imitar algum hippie. Ela, com brincos, presilhas, vestido, enfim, estilo que tinha a mesma intenção do seu parceiro.

Há tempos, muitos anos, na realidade, não pensava nela. Fez um grande esforço para lembrar o motivo do término do namoro. Não conseguiu. Alguma idiotice adolescente, na certa. Imagens e sons inundaram sua mente já envelhecida. A risada estridente, o cheiro, a inexperiência no sexo, as conversas, as viagens, os planos, as promessas. Promessas. Todas em vão. Não ficaram juntos, nunca mais se falaram. Quando se encontravam em algum lugar, fingiam não se verem. Aliás, desconhecia seu paradeiro.

Ele se formou, fez mestrado, doutorado, casou-se, teve filhos, netos, enviuvou. Ela, com certeza deve ter constituído família, já que era seu sonho. Seu psicológico não estava preparado para essa avalanche emaranhada de lembranças emotivas. Uma chuva de lágrimas começou a cair sobre a foto amarelada pelo tempo. Ele a deixou cair e, enquanto acompanhava sua lenta queda até o chão, se deu conta de como a vida era cruel. Vivemos, trabalhamos, acumulamos, lutamos, choramos. Para quê?

Todas as coisas boas terminam assim: escondidas no canto de uma caixa de sapatos.

domingo, 9 de setembro de 2012

Jesus Kid e a prostituição intelectual

Jesus Kid é uma ferrenha, intensa e inteligente crítica de Lourenço Mutarelli ao mercado editorial. Com uma prosa rápida e contundente e diálogos ágeis e ácidos que muito lembram os filmes de Tarantino (como o próprio Mutarelli faz questão de mencionar por meio de sua personagem central), o romancista conta a história de Eugênio, um escritor que é obrigado a ficar trancafiado em um hotel por três meses, com a missão de escrever uma história que viraria roteiro para o cinema.

De início, uma missão fácil. Mas, conforme os dias vão se arrastando, o protagonista descobre que criar algo sob encomenda não é das tarefas mais fáceis a serem feitas. Mutarelli mostra um escritor às voltas com sua personagem criada anteriormente, Jesus Kid, que enfraquece conforme sua prostituição intelectual fica mais evidente. Eugênio é um escritor de livros pulp, do gênero western, que são vendidos em bancas de jornais. Ou seja, seu ganha-pão, até então.

A paixão por fazer uma literatura considerada de baixo nível (que, apesar dos pífios rendimentos, realizava-o como artista) é colocada de lado quando lhe oferecem trinta mil reais para que fizesse o tal roteiro. A partir daí, o escritor passa a conviver com todos os personagens que habitam o seu imaginário, em uma louca sucessão de situações surreais e mirabolantes, que fazem o leitor mergulhar em um universo onde realidade e ficção se confundem. 

Com maestria, Mutarelli toca em um assunto que, vira e mexe, vem à tona, na maioria das vezes protagonizado por escritores de personalidade forte e que não desistem de seus ideais por dinheiro, como o britânico Alan Moore. O argumentista inglês não deu seu aval a nenhuma das suas obras que foram adaptadas para o cinema (como Watchmen, A Liga Extraordinária e  V de Vingança) e também se demonstrou extremamente irritado com a decisão da DC Comics (dona do material por ele criado) de lançar a série Before Watchmen.

Em Jesus Kid, essa questão também é levantada, quando, por conta das baixas vendagens, a editora que detém os direitos sobre o pseudônimo (Paul Gentleman) e a personagem criados por Eugênio, pede para que outro escritor tome para si tais elementos e escreva uma história diferente do que vinha sendo criado, para que o caixa volte a engordar.

Até que nível um artista deve descer para que suas ideias sejam compradas e dinheiro possa ser gerado? Sem dúvida, dividendos devem ser obtidos para que seja possível sobreviver em uma sociedade capitalista como a nossa. Mas o quão obsceno pode ser a venda de ideias e ideologias? Será que a consciência criativa de um artista suporta tamanha contradição?

Para aqueles que se preocupam com tais questões, Jesus Kid é leitura obrigatória.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O "circuitão" em grande fase

Alguns sites especializados em quadrinhos, como Pipoca e Nanquim, Super Novo e Cruzador Fantasma, fizeram uma lista dos dez melhores títulos mensais editados pela DC Comics, que zerou todas as suas revistas e deu novos mundos e personalidades aos seus super-heróis. Para efeito de informação, sou um dos que acompanham essa tão comentada fase da editora, que investiu pesado para ganhar rios de dinheiro.

Fui leitor desse "circuitão" dos quadrinhos mensais de super-herói por um bom tempo, mais precisamente durante minha adolescência. Parei de colecioná-los há mais ou menos uns dez anos, devido à falta de tempo (trabalho, estudos, enfim, vida adulta que se iniciava) e a baixa qualidade apresentada pelas revistas, editadas no Brasil, naquela época, pela Editora Abril.

Esse restart fez-me voltar a acompanhar, hoje com um senso crítico mais aguçado, esses marmanjos que usam cuecas por cima das calças e combatem o crime. E, confesso, há boas coisas ali.

Nunca fui grande fã do Superman. Sempre o considerei o mais ridículo entre todos os medalhões, com toda a sua pose de certinho e defensor dos fracos e oprimidos. Porém, esse novo Clark Kent que habita uma Metrópolis mais atualizada, surpreende-me positivamente a cada história, fazendo com que, depois de anos, eu tenha aquela ansiedade de menino, esperando impacientemente pela próxima edição. Os roteiristas George Pérez e Grant Morrison estão fazendo um brilhante trabalho em seus respectivos arcos, com um Homem de Aço de personalidade complexa, que destoa daquele que era ligado à infantilidade dos quadrinhos.

Batman, meu favorito, como já mencionei inúmeras vezes, está em grande fase nas mãos de Scott Snyder e Greg Capullo, que fazem histórias de tirar o fôlego, com narrativas dignas de comparação a grandes romances policialescos. Peter J. Tomasi, na revista Batman & Robin (presente aqui no Brasil em A Sombra do Batman), também trouxe, junto com o competente narrador gráfico Patrick Gleason, um Menino-Prodígio sanguinário e violento, filho de Bruce Wayne, treinado pela Liga das Sombras, bem diferente dos Robins bobinhos do passado.

Aquaman, outro medalhão frequentemente ridicularizado, é uma das mais gratas surpresas desse reinício. Geoph Johns e Ivan Reis estão fazendo miséria com histórias empolgantes e com doses inteligentes de violência e suspense. Há ainda a excepcional arte de J. H. Williams III com sua Batwoman, que lembra muito as velozes sequências que só os filmes de ação poderiam representar.

Mulher-Maravilha, Flash, Lanterna-Verde. Enfim, todos eles estão em grande forma, fazendo justiça ao time de artistas pro trás desse up que as vendas da DC receberam, que é resultado não só de toda a propaganda feita em torno dos títulos, mas também pela qualidade que ali é encontrada. 

Além disso, a Panini Comics, sua atual editora brasileira, está fazendo um belo trabalho estético. Para quem nunca gostou dos quadrinhos mainstream, é uma boa oportunidade para cameçar a lê-los

Afinal, não se sabe até quando essa boa fase durará.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Saborear e recomendar

Exceto aqueles leitores que, por ideologia ou idade avançada, prendem-se aos autores clássicos já devidamente enterrados e imortalizados, os outros amantes da literatura buscam algo novo com o que se encantar.  Claro, todos possuem os seus escritores prediletos, que nos fazem ler e reler incansavelmente um romance, um conto ou um poema. 

A forma de escrever, o modo como as ideias são expostas, enfim, são coisas que inexplicavelmente nos cativam, convencendo-nos de que aquele determinado nome impresso na lombada quadrada do livro merece um lugar especial em nossa estante. E, como fiel membro do grupo dos caçadores de ideias novas, exponho aqui duas recentes descobertas que me foram muito gratas.

 A primeira remete ao romancista, roteirista, ator e quadrinista brasileiro Lourenço Mutarelli. Sim, alguns aqui se surpreenderão por só agora, tão tardiamente, o indivíduo que aqui vos escreve ter descoberto o autor de obras como O Cheiro do Ralo, Natimorto e dos quadrinhos protagonizados pelo detetive Diomedes. Admito, foi um lapso. O fato é que o pouco contato que tive com os escritos desse paulistano foi o suficiente para cativar-me profundamente. Além de sua produção, que deixou-me ansioso por devorá-la o quanto antes, Mutarelli é um daqueles caras que, quando falam, inspiram multidões. Contido, mostra-se conhecedor nato de variadas formas de arte, o que faz com que seja tão polivalente como artista. Prova disso é sua entrevista para o programa Provocações, transmitido pela TV Cultura no dia 03 de abril de 2012. A cada pergunta feita pelo apresentador Antônio Abujamra, ele citava inúmeras referências, que abrangiam cinema, quadrinhos e literatura, levando-me a pesquisar e incluí-las em minha lista de desejos culturais.

Minha segunda e recente descoberta, à qual me referi acima, é o argentino Ernesto Sabato (foto), cujo livro "O Túnel" está entre as obras da bela e recém-lançada Coleção Folha LIteratura Ibero-Americana. Sylvia Colombo introduz o livro como "um drama de cunho existencialista embutido numa narrativa policial". Tal mistura literária cumpriu toda a expectativa que foi em mim previamente despertada. Com uma velocidade narrativa peculiar a excelentes romances policialescos, Sabato induz o leitor a mergulhar na loucura do paranóico protagonista Juan Pablo Castel, que inicia o história dizendo-se cometedor de um assassinato, e em tom confessional revela os motivos que o levaram a realizá-lo. Consagrado em seu país, Ernesto Sabato acaba de ganhar lugar cativo em minhas preferências literárias, levando-me a recomendá-lo fortemente para aqueles que estão em busca de uma trama embriagante.

No momento, encontro-me na companhia do romance Jesus Kid, de Mutarelli, que me foi recentemente presenteado por uma amiga. Lá estão presentes variadas e muito bem elaboradas referências às obras de nomes como Tarantino e Leone, que resultaram num omelete que tem como ingredientes elementos do western e diálogos ácidos. Enfim, tudo o que aprecio.

Só me resta saborear. E recomendar.