domingo, 21 de outubro de 2012

Bom como um beijo de femme fatale

Como já mencionei inúmeras e exaustivas vezes por aqui, durante o ano, fica difícil para quem gosta de ler encontrar tempo para fazê-lo com a quantidade de afazeres relacionados a trabalho e estudo. Obras muito cerebrais são um convite ao sono. Então, as narrativas dinâmicas, porém, de qualidade, são as melhores pedidas para se degustar no ônibus ou em momentos raros de descanso.

Os romances policiais de Raymond Chandler, ambientados nos Estados Unidos economicamente quebrados das décadas de 30 e 40, presenteiam seus leitores com uma gama de personagens e tramas cativantes, que prendem do início ao fim. No romance “A dama do lago”, de 1943, não é diferente.

O detetive que nada sabe sobre técnicas investigativas, durão e sedutor Philip Marlowe, protagonista das histórias de Chandler, mais uma vez é envolvido em um caso complexo e recheado de reviravoltas. Contratado por Derace Kingsley, um figurão da proibida cidade de Los Angeles, para descobrir o paradeiro de sua mulher, Marlowe se vê em uma teia de acontecimentos que abrange corruptos, enganadores, improváveis inocentes e femme fatales. No rastro de Crystal, bela e loura esposa foragida de Kingsley, que supostamente teria fugido com Chris Lavery (um ex-funcionário do marido), Marlowe é obrigado a subir até um rancho de Derace, em Puma Point, onde conhece o simples caseiro Bill Chess.

Chess informa que, assim como no caso de Kingsley, sua mulher, Muriel, também o havia abandonado e desaparecido. Coincidentemente, ambas possuíam os mesmos belos traços pertinentes a uma femme fatale: louras, lindas, charmosas, misteriosas e, claro, fatais. Enquanto conversam, andando ao redor do lago Little Fawn, têm a grata surpresa de encontrar algo particularmente estranho: o corpo de uma linda, loura e charmosa mulher. Era Muriel.

A partir daí, uma investigação complexa e cheia de reviravoltas é conduzida com narrativa competente e inteligente. Personagens caipiras, nativos da província de Bay City, como o tranqüilo e monótono xerife Patton, dão um ar western à trama, o que contribuí ainda mais para a tensão entre mocinhos e bandidos. Em certos momentos, não se sabe exatamente quem é o bom, o mau ou o feio da história. Policiais corruptos e inescrupulosos levam o leitor a duvidar do papel de cada indivíduo na trama.

A já conhecida habilidade de Raymond Chandler em descrever cenários realmente mexe com o imaginário do leitor. Detalhes como um vaso posicionado em certo canto do imóvel, um tapete que dá ar altivo a um escritório ou a penumbra que abrange uma sala criam cenários como os dos clássicos filmes de estética noir, em que o preto e o branco se entrelaçam por suas intensidades. Várias obras de Chandler, aliás, como “O sono eterno”, foram adaptadas para as telonas e tornaram-se grandes clássicos do gênero.

E, claro, não há como passar despercebido pelas celebres frases metafóricas de Marlowe. Para citar um exemplo: ao entrar em um luxuoso edifício e olhar as vitrines, compara essências e perfumes em frascos de vidro adornados por laços de cetim com “garotinhas em uma aula de balé.”

A estética dada pela editora L&PM ao livro propriamente dito é mais um atrativo. A literatura detetivesca americana sempre foi considerada como pulp. Ciente disso, os editores da L&PM, reconhecidamente a maior e melhor editora de livros de bolso do Brasil, deram um belo acabamento artístico à capa, com cores simples, que remetem a essa literatura considerada marginal pelos críticos mais cultos. Uma blasfêmia, em minha opinião.

Para aqueles que gostam de ação e suspense de tirar o fôlego, “A dama do lago” é leitura obrigatória. 

Ou, como talvez Marlowe o classificasse: um romance noir bom como um beijo de femme fatale.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O incrível imaginário de Moacyr Scliar

Uma coisa que sempre me intrigou como leitor é a aparente e inesgotável fonte criativa de alguns escritores. Certos caras realmente me surpreendem pela quantidade de obras providas de indiscutível qualidade que lançam. Acho que a maioria das pessoas apreciadoras de literatura já tentou ou teve a curiosidade de escrever uma ficção, algo pequeno e sucinto que desse gosto em ser lido. Confesso: já tentei várias vezes e não consegui. Talvez a solução seja partir de ideias pequenas, como o próprio Lourenço Mutarelli confessou fazer. Mesmo assim, a coisa não é fácil. 

Por isso sou profundo admirador de Moacyr Scliar (1937 - 2011), um médico não somente do corpo humano, mas também das palavras, que sabia manuseá-las como ninguém. Li certa vez, num texto do Tony Bellotto, que ele conseguia escrever em meio a toda agitação de saguões aeroportuários, enquanto esperava por seu vôo. Era só sentar, colocar seu notebook no colo, ligá-lo e pronto: as ideias jorravam para a tela do portátil.

Fui leitor assíduo de seus textos na Folha de S. Paulo e acabo de estreá-lo na forma de literatura, através do romance (um puta romance, aliás, como diria a protagonista da história) "A mulher que escreveu a bíblia". Com uma narrativa envolvente, inteligente e, acima de tudo, ágil, a obra me acompanhou por esses dias (poucos, já que, mesmo com escasso tempo para leitura, devorei-a).

Scliar conta a história do mito da mulher que teria redigido os escritos bíblicos. Até aí, tudo bem. Mas o modo como ele narra o cotidiano da mulher extremamente feia e faminta por sexo adquirida pelo rei Salomão é algo fascinante. Com um vocabulário contemporâneo misturado ao dialeto pertinente à época, o escritor gaúcho mostra sua habilidade, através de sua narradora autodiegética, para criar histórias criativas e mirabolantes, baseadas em mitos e fábulas, que se aproximam dos dias atuais.

As reflexões acerca de seu desejo por certo pastorzinho, o tesão que sente por seu marido (que possui centenas de esposas e concubinas), os planos para conseguir a sua tão sonhada foda, as análises sobre a situação diplomática e política do reino e o seu relacionamento com as outras mulheres do harém de Salomão me arrancaram risos pela absurda relação entre o contexto histórico e os desejos de uma mulher marginalizada por sua feiúra, que é incumbida da escritura do livro sagrado por ser a única alfabetizada (secretamente, diga-se) e detentora de grandes dotes narrativos.

"A mulher que escreveu a bíblia" mostra o quão incrível e inesgotável era o imaginário de Moacyr Scliar. Fábrica de histórias essa que, infelizmente, só teve sua produção interrompida pela morte.

O que, consequentemente, tornou-o um imortal.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Literatura pura e de qualidade

Dos romancistas brasileiros contemporâneos que eu ansiava ler, Milton Hatoum é o que mais me gerava espectativa. Em artigos de jornais e revistas, postagens em blogs literários e no ambiente acadêmico, Hatoum é um nome constante, através da menção de sua obra mais aclamada, o romance intitulado "Dois Irmãos". Porém, não foi por meio desse livro que comecei minha empreitada por seus escritos.
 
"Cinzas do Norte" já estava há alguns meses encaixado em uma pequena fileira de livros alojados em minha estante. Peguei-o para minha prática diária de leitura, que é feita dentro do ônibus da empresa na qual trabalho, no trajeto de volta do percurso. Confesso, já de primeira, que foram entretedores e empolgantes (mesmo sendo eles curtos e fragmentados) momentos literários.  

A história dos amigos Mundo e Lavo é contada numa Manaus historicamente ambientada nos anos de ditadura militar do Brasil. Inicialmente, pode-se pensar que seja um tema batido. Mas esse enredo contribui muito para o andamento da história, que mostra ao leitor os segredos pecaminosos das famílias desestruturadas nas quais os dois amigos de personalidades completamente diferentes cresceram. 

O próprio  Hatoum revela, conforme menciona Irineu Franco Perpetuo no prefácio do livro, que as duas personagens são fragmentos de sua própria personalidade: Mundo, um artista louco que almeja deixar sua terra natal o quanto antes para ganhar outros territórios; Lavo, um indivíduo centrado e ciente de suas obrigações para com seus semelhantes em sua terra.

Ao mesmo tempo em que desenvolve a história  através da voz autodiegética de Lavo, Hatoum faz ferozes e fiéis descrições críticas do então regime político conservador, que invade a casa de Mundo e faz com que seu pai, Jano, viva a mercê dessa cruel e ferrenha doutrina. Mas Hatoum não se atém apenas a esse espinhoso tema. No desenrolar da trama, o leitor absorve grande conhecimento cultural remetente à quente e úmida capital amazonense, que abrange a culinária, o artesanato, as festas e uma infinidade de outras peculiaridades espaciais, como a pobreza e simplicidade das pessoas que habitam as margens dos rios.

Em certa entrevista, o romancista diz que compor romances é um jogo de paciência que exige coragem. Há de se escrever, ler e pesquisar, dia e noite, durante anos, além de ter certa experiência histórica. "Cinzas do Norte" mostra que Hatoum foi paciente e corajoso na medida certa e soube transplantar todo o seu conhecimento sobre Manaus de maneira clara e competente, com uma narrativa forte e envolvente.

"Cinzas do Norte" é literatura pura e de qualidade.