quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Raymond Chandler e o detetive do acaso

 
Texto publicado no Homo Literatus em 30 de outubro de 2013.

No livro Segredos do Romance Policial: história das histórias de detetive (Três Estrelas), P. D. James dedica um capítulo aos romances policiais e detetives estadunidenses intitulado “Durões por fora, sensíveis por dentro”. Nele, James aponta para as peculiaridades do roman noir da terra do Tio Sam: violência, desigualdade social, corrupção, suborno e, claro, assassinato, crime caro comum às narrativas policiais. Todos esses elementos estão presentes na obra Janela para a morte (L&PM), da autoria de Raymond Chandler.

Philip Marlowe, o protagonista das histórias de Chandler, é contratado por Elisabeth Murdock, ricaça viciada em vinho do Porto, para investigar o desaparecimento de uma valiosa moeda, o Dobrão Brasher. Inescrupulosa e preconceituosa como é, Murdock acusa Linda, dançarina de Los Angeles e ex-mulher de seu filho, Leslie, pelo furto.

Marlowe pode ser considerado um detetive do acaso, se comparado aos clássicos investigadores C. Auguste Dupin e Sherlock Holmes, que resolvem seus enigmas de maneira cerebral. Amante do jogo de xadrez, conhecedor dos maiores jogadores da história, movimenta suas peças de modo aleatório, tal fosse um enxadrista iniciante.

Para solucionar o caso da moeda desaparecida, embrenha-se em um mundo repleto de vigaristas e assassinos. Sendo assim, ele se depara com três cadáveres, vítimas de assassinato, que colocam a polícia em seu encalço. Não bastasse isso, o passado da família Murdock vem à tona, revelando que esse caso não se resume ao sumiço de um item valioso.

No desenrolar da trama, percebe-se a crítica social exercida por Chandler, que mostra pessoas da baixa sociedade, residentes dos bairros pobres de Los Angeles, que perambulam pelas entranhas da alta classe social de Pasadena. A diferença entre ricos e pobres está nos dentes amarelados, no uísque barato, nas roupas mulambentas.

A narrativa é, de uma só vez, ágil e crua, com longas e detalhadas descrições peculiares à pulp fiction, que alongam a história, beirando a divagação. Os cenários são descritos minuciosamente pelo protagonista-narrador, dando certo tom poético à narrativa. O título da obra, brutal e enigmático, só é explicado nos derradeiros momentos da trama.

Janela para a morte, além das outras obras de Raymond Chandler, influenciou gerações de escritores. É um clássico por excelência.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Crônica da solidão

 
Texto publicado no Homo Literatus em 24 de outubro de 2013.

Há sete anos tomo ônibus para o trabalho no mesmo local, na mesma hora. Várias pessoas já se utilizaram daquele ponto. Ela estava lá pela primeira vez. Conhecia-a de vista há algum tempo, pois se utilizava do mesmo itinerário, embarcando em outra paragem, algumas quadras após a minha. São cinco e pouco da manhã.

“Bom dia!”

“Bom dia…”

“Ah, é aqui que o ônibus para?”

“É…”

“Ah, pensei que fosse ali. Antes eu morava na rua dezoito, mas como meu marido voltou pra Indaiatuba, fiquei com medo de morar sozinha, daí aluguei um quarto na casa da Soninha. Ela me disse que é viúva e seus filhos não moram mais ali e também tem medo de ficar sozinha. Aí, é bom, né? Uma faz companhia pra outra.”

“Uhum.”

“Meu marido voltou pra Indaiatuba porque tá difícil de arrumar emprego por aqui. Levou os quatro cachorros com ele. Eu trabalho lá na empresa há quatro anos. Fui transferida pra essa filial no início de 2011. Como meu marido tinha emprego em Indaiatuba, vim sozinha, entrei em depressão, voltei pra Indaiatuba, me tratei, voltei pra cá com meu marido, que pediu a conta no antigo serviço, mas teve que voltar pra lá, porque aqui tá difícil. Mas no ano que vem, já combinei tudo com o meu supervisor, eles me mandam embora, daí eu volto pra Indaiatuba. Estou fazendo técnico em enfermagem. Acabo no meio do ano que vem. Estou com quarenta e três anos, sempre trabalhei em linha de produção. Daí, como enfermeira, eu posso trabalhar até os sessenta anos. Aí, posso arrumar trabalho em Indaiatuba. Aí, é bom, né?”

“É.”

“Tsc, olha só o tamanho da minha mochila. Saindo do trabalho, vou direto pro RPG. Tô levando minhas roupas. Será que vai chover? Tenho uma capa de chuva, também. Será que vai esfriar? Ainda bem que peguei minha blusa.”

O ônibus chegou. Por ser muito cedo, como sempre, os outros passageiros estavam adormecidos. Busquei, como sempre, um banco vazio, localizado nos fundos. Ela se sentou, como sempre, num dos primeiros bancos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Conteúdo obrigatório na sala do dentista: gibis

Texto publicado no Homo Literatus, em 9 de outubro de 2013.

Ao abrir a boca em frente ao espelho, visualizo uma série de obturações prateadas que cobrem meus dentes do fundo. Quando sorrio, vejo uma dentição mais ou menos alinhada, pode-se dizer até apresentável, fruto do uso de aparelho por nove anos.

Resinas que substituem pedaços quebrados. Gengiva com cicatrizes. Arco colado na parte traseira dos frontais inferiores. Passei boa parte de minha infância em consultórios ortodônticos. Sim, eu tinha muito medo. Minha mãe que o diga. Quase era preciso me amarrar à cadeira e tapar minha boca com mordaça, tamanho era o berreiro. Um caos. Uma vergonha. Enfim.

Mas, acreditem ou não, eu adorava a sala de espera. Motivo: os gibis. Inúmeros e variados que eram, faziam-me esquecer por alguns minutos os terror que me aguardava para dali a pouco. Eu lia vorazmente o máximo possível antes de ouvir meu nome proferido pela secretária, torcendo para que a restauração do pobre coitado lá dentro não desse certo e precisasse ser refeita.

Foi esperando pela minha vez nestes lugares que desenvolvi minha admiração pela Turma da Mônica, o que resultou na fissura pela leitura, que me acompanha até hoje. Mais do que pelos habitantes da Rua do Limoeiro, meu preferido sempre foi o Chico Bento. Ele, Zé Lelé, Nhô Lau e companhia me faziam tentar (em vão) segurar o riso, enquanto os outros pacientes olhavam desconfiados em minha direção. No auge dos meus oito, nove anos, saia dali com vontade de passar um tempo inesgotável lendo aquelas revistinhas, pois, talvez inconscientemente, percebia que aquilo aliviava um pouco minha dura realidade odontológica. Posso dizer que não foi em uma biblioteca que meu interesse pela leitura se desenvolveu, mas sim na sala de espera de consultórios.

Outro dia, ao ir para uma consulta de rotina (ainda possuo um pouco de medo, mas consigo controlá-lo), notei que havia muitas revistas na recepção. Caras, Contigos, Vejas, Épocas. Procurei por baixo da pilha. Nenhum gibi. Havia uma criança ali, inquieta, apavorada com os ruídos arrepiantes que vinham da outra sala. A mãe não conseguia acalmá-la. Não havia nada para distraí-la. Aquelas revistas de gente chata não serviam pra ela.

Pensei no trauma dessa criança, que não extrairia nada de bom daquelas idas ao dentista. Perguntei-me se algum dia ela poderia se interessar pela leitura, se haveria uma situação propícia como aquela para que ela descobrisse que a ficção é a melhor maneira de fugir do mundo real.

Conclui que, talvez, o número de leitores no Brasil fosse maior se os gibis fossem conteúdo obrigatório de uma sala de espera.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O legado de Edgar Allan Poe

Texto publicado no Homo Literatus, em 7 de outubro de 2013.

Atualmente, quando se pensa em tramas policiais e histórias de detetive, é quase impossível não associar esse gênero aos produtos da indústria estadunidense de entretenimento. Filmes e séries com frenéticas e violentas investigações policiais, em que os tiras quase sempre chegam à solução por meio de investidas truculentas, são bem comuns e geram grande receita.

No romance policial não é diferente. Raymond Chandler inseriu seu protagonista, o detetive Phillip Marlowe, no decadente e violento cenário dos Estados Unidos das décadas de 1920 e 1930, auge da Lei Seca e do colapso econômico norte-americano. Nenhum pouco cerebral, Marlowe se utilizava do acaso para resolver os casos nos quais estava envolvido e, por isso, muitas vezes sofria as brutais consequências por se meter em ninhos de gangsteres e policias corruptos.

Porém, antes de “violentos” escritores como Dashiell Hammet e James Ellroy, Edgar Allan Poe, consagrado por suas histórias de horror e mistério, deu vida ao Chevalier C. Auguste Dupin, excêntrico parisiense que tem, assim como Sherlock Holmes, suas ações narradas por um indivíduo que convive com ele, fazendo as vezes de Dr. Watson. Como se vê, possivelmente os contos da “trilogia Dupin” serviram como fonte direta de inspiração para Sir Arthur Conan Doyle.


Esta tríade de narrativas curtas formada por “Assassinatos na Rua Morgue”, “O mistério de Marie Rougêt” e “A carta roubada” mostra um extravagante indivíduo, simpático ao exercício intelectual que, não por qualquer simpatia às vítimas, mas sim pelo prazer de resolver enigmas, envolve-se na investigação de mortes e roubos.

Sentado em sua sala, envolto por trevas e anéis de fumaça provenientes de seu cachimbo, Dupin resolve as ocorrências por meio de deduções baseadas em cálculos matemáticos, estatística e poesia. Sua mente vai além dos métodos investigativos da polícia parisiense, que, segundo ele mesmo a define, é bem intencionada, porém, limitada. Em momento algum ele se vale da força física em suas empreitadas, passando a imagem de um autêntico cavalheiro pensante, cerebral em todos os aspectos de seu ser. Na surdina, baseado em depoimentos díspares com poucas coincidências, notícias de jornal e complexa obviedade de um esconderijo, Dupin surpreende a todos, inclusive ao narrador de suas peripécias, que não se cansa de encontrar novidades em seu curioso comportamento.

Além do misterioso corvo de seu famoso poema e de um assustador e enigmático gato preto, Poe deixou como legado, quando faleceu há 154 anos, um personagem carismático, que se tornou clássico para todos os amantes da boa ficção policial.