segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Puta merda, dois mil e treze!

 
Pois é. Acabei de me dar conta que o último dia do ano chegou. Porra, essa linha temporal em que vivemos é foda. Clichê dizer isso, mas, puta merda, passa rápido pra caralho. Não sei se isso acontece porque queremos fazer muitas coisas ao mesmo tempo ou se alguém tá mesmo enfiando o pé no acelerador. Espero que seja a primeira alternativa, assim ainda dá tempo de fazer menos coisas.

O fato é que esse blog completou no último dia sete de dezembro seu segundo ano de vida. Há muito não escrevo um texto como esse, feito exclusivamente para ele. Hoje, infelizmente esse espaço tem servido apenas para catalogar o que ando escrevendo em outras casas, lugares nos quais eu provavelmente não escreveria se não tivesse tido a iniciativa de criar, há dois anos, o Donnerwetter!.

Graças a ele, nesse ano arrumei mais dois "empregos", em plataformas que me deram a oportunidade de ser mais visto e, por esse motivo, ter mais medo de escrever, policiar-me de maneira mais rigorosa. Passei a assinar textos na Obvious, plataforma que abrange textos sobre todos os tipos de arte, e, a convite do Vilto Reis, entrei para a equipe de colunistas do Homo Literatus. Tem sido uma puta duma experiência publicar nesses espaços, pois venho aprendendo muito com os outros escrevinhadores. Mesmo que às vezes isso ocorra de maneira inconsciente, há uma troca de experiências muito foda. É o lado bom da internet, esse rompimento infinito de fronteiras.

Eu, pessoa que tem aversão a números, confesso que às vezes me vejo apegado a eles. Sei que a ideia de escrever não deve ser atrelada à produção, mas sim à qualidade. Bem, olhando para a soma do que escrevi nesse ano, foram, contando com esse, quarenta e sete anacronismos modernos escritos manualmente, fora provas e trabalhos feitos para a faculdade. Essa quantidade de textos indica que, mesmo com muitas responsabilidades, consegui ler muita coisa. E o pior é que não cheguei na metade dos livros, quadrinhos e filmes que gostaria ter degustado. Escrever ficção também foi uma obsessão frustrada. Mesmo assim, admito que fico contente por ter conseguido gerar esse pequeno número. Óbvio que para o ano que vem algumas metas não alcançadas serão mantidas e somadas a outras. E tome correria.

Enfim, amanhã é dois mil e catorze e um novo ciclo blá, blá, blá. O que desejo para você, raro leitor, rara leitora? Menos Facebook e mais livros.

Até.

A coragem de Philip K. Dick

 
Texto publicado no Homo Literatus em 27 de dezembro de 2013.

Eis a grande questão levantada exaustivamente por Philip K. Dick: “o que é a realidade, afinal?”.

Os ingleses Alan Moore e Dave Gibbons imaginaram em Watchmen um mundo em que os Estados Unidos, durante a Guerra Fria, possuíam como principal arma contra ataques nucleares um ser tido como indestrutível. Dr. Manhattan teria a capacidade controlar átomos e moléculas de qualquer coisa sólida, podendo desintegrá-la com um estalar de dedos.

Em O Homem do Castelo Alto, romance lançado originalmente em 1962 e vencedor do Hugo Award, Dick projeta uma realidade na qual os Estados Unidos perderam a Segunda Guerra Mundial para os países que formavam o eixo.

A trama não apresenta um protagonista. Há uma gama de personagens que tentam sobreviver burlando um sistema legislativo dominado por japoneses e nazistas. Para isso, máscaras e identidades secretas são construídas. Suas atitudes são baseadas no que o oráculo chinês I Ching apresenta a seus olhos. Nada do que fazem é executado por vontade própria.

Robert Childan é um comerciante de objetos pertencentes à cultura estadunidense considerados de valor histórico que tenta ascender socialmente e ser aceito pela aristocracia japonesa, mesmo que para isso ele tenha que se rebaixar perante os conquistadores de sua terra.

O artesão judeu-americano Frank Frink é um homem que tenta ganhar dinheiro para ter de volta sua ex-mulher, Juliana Frink, uma instrutora de judô que transita de um lugar a outro sem saber exatamente o que quer. Ela acaba por se envolver com Joe Cinadella, caminhoneiro de persuasões fascistas que aparece de maneira misteriosa em sua vida, acontecimento esse que não se mostrará obra do acaso.

Mr. Baynes é um enigmático indivíduo sueco que chega aos Estados Unidos como enviado de uma indústria fabricante de plásticos para negociar com o Sr. Nobusuke Tagomi, um inseguro e supersticioso representante comercial japonês. O propósito dessa visita mostrará que as intenções de Baynes não são nada comerciais.
 
E há o homem do castelo alto, o escritor Hawthorne Abendsen, autor do livro O Gafanhoto Torna-se Pesado, romance que apresenta uma absurda realidade na qual os Estados Unidos teriam vencido a Segunda Guerra Mundial, fazendo com que nazistas e japoneses tenham que abaixar a cabeça para a supremacia norte-americana. Discutida entre todos os núcleos de personagens, essa obra incomoda seus leitores, que admiram a coragem de seu escritor.

Coragem essa que também faz parte das características de Philip K. Dick, que em O Homem do Castelo Alto nos coloca a desconfiar se o que vivemos é real ou apenas uma de variadas linhas temporais possíveis.

O Chevalier de Edgar Allan Poe II

 
Texto publicado na Obvious em 14 de dezembro de 2013.

P. D. James, no livro Segredos do romance policial: história das histórias de detetive, coloca o chevalier C. Auguste Dupin como o "primeiro investigador fictício a confiar primordialmente na dedução a partir de fatos observáveis." O conto "O mistério de Marie Rogêt" não deixa dúvidas a repeito disso.

A narrativa é baseada em uma história real, na qual Mary Cecilia Rogers foi assassinada em Nova York. Edgar Allan Poe transfere todo esse ambiente da cidade estadunidense para Paris, inclusive os jornais que publicaram matérias a respeito do caso, com nomes parecidos com os originais, mas em língua francesa.

O narrador sem nome, que relata as proezas do amigo, apresenta várias vozes - população, jornalistas, policiais - para mostrar como a de Dupin destoa de todas elas. O intelectual, que exerce a função de investigador apenas para sentir-se menos entediado, critica o sensacionalismo superficial dos jornais: "O perioódico que adota opiniões triviais (não importa o quão bem fundamentada seja a opinião) não conquista nenhum respeito com o povo. As massas consideram somente aquele que sugere contradições pungentes à ideia geral."

 
Dupin analisa todas as probabilidades baseado em evidências da anatomia humana e da física, dissecando e identificando notícias de jornal que soam falsas e manipuladoras, revelando-se um leitor de apurado e raro senso crítico. O chevalier dá uma aula de investigação criminal, na qual todas as evidências são consideradas.

Nota-se uma fusão entre jornalismo e literatura. A opinião pública também é levada em conta, já que é dotada de pontos de vista baseados nos rastros de violência que assolam a cidade. P. D. James, em sua obra citada anteriormente, coloca "O mistério de Marie Rogêt" como o exemplo pioneiro de investigação de gabinete, no qual "o detetive resolve o crime a partir de recortes de jornal e reportagens". Essa cena é recorrente em filmes e séries policiais, nos quais uma teia de fotos e notícias é montada para chegar aos criminosos.

A mente de C. Auguste Dupin apresenta-se como algo similar a isso: linhas imaginárias que se entrecruzam e encontram uma complexa e improvável solução final.

Intertextualidades, leituras e releituras

 
Texto publicado na Obvious em 12 de dezembro de 2013.

Para correr, é necessário que o sujeito esteja com o preparo físico em dia, estado esse que só é atingido mediante a prática regular de corridas, com periodicidades que podem variar dentro dos sete dias da semana. Com relação à leitura, talvez seja a mesma coisa. 

Quando se começa a ler um livro um pouco mais complexo em seu conteúdo, dependendo do preparo do leitor, a coisa não flui, os olhos pesam, as páginas não andam, o marcador parece estático e o livro torna-se um peso.


Uma boa alternativa para a leitura voltar a ser produtiva são releituras, ler o que já foi lido, algo que é certeza absoluta de um fluxo de palavras e páginas em ritmo leve, galopante, avassalador. O exercício de voltar a uma obra pode ser extremamente prazeroso, já que o leitor volta a saber o motivo pelo qual aquela história é grandiosa, além de estar atento a novos detalhes que uma primeira leitura não permitiu enxergar. 

Se a narrativa, curta ou longa, possuir referências a outros autores, melhor ainda, pois a curiosidade será atiçada e novas perspectivas serão abertas. Dizem que uma coisa leva a outra, que leva a uma mais adiante, formando-se uma linha ou um ciclo de ocorrências. 

No conto policialesco "A coleira do cão", da autoria de Rubem Fonseca, o introvertido delegado Vilela carrega para cima e para baixo um pequeno livro de poesia intitulado Claro enigma, sendo vigiado com desconfiança por aqueles que o cercam. Afinal, um homem que lê poemas destoa de todo o ambiente de criminalidade, miséria e corrupção que compõe a periferia do Rio de Janeiro.

 
Marçal Aquino, em sua breve narrativa "Impotências", fala da vida que seu falecido tio teve, comparando-a com supostas vidas que ele poderia ter levado, tragetórias de vida mais dignas, com namoradas, emprego, carros populares, filhos amáveis, sexo, John Lennon e, acima de tudo, Carlos Drummond de Andrade, poeta com um eu todo retorcido, de sete faces, que mistura o sangue do leiteiro ao produto que lhe dá um ofício.

Rubem Fonseca e Marçal Aquino são autores afins. Quem gosta de um, inevitavelmente vai viciar-se no outro, pois ambos misturam narrativas ágeis e ao mesmo tempo reflexivas, com personagens existencialistas que não encontram seu espaço no mundo em que vivem, habitantes de ambientes periféricos, imundos, decadentes, podres. Leitores de Raymond Chandler e Drummond, Rubem e Marçal trazem notável refinamento poético a suas narrativas policiais.

Uma dose diária, pequena e breve de Fonseca, Aquino e Drummond deixará o leitor em plena forma, apto a encarar qualquer leitura.

Caderno de notas literário

 
Texto publicado no Homo Literatus em 10 de dezembro de 2013.

Estamos na era do diário aberto, em que os usuários do Facebook reportam até o mais ínfimo e mesquinho evento de suas vidas, mostrando para seus seguidores o que está ocorrendo no seu cotidiano. Outrora, o diário foi um caderno cheio de segredos, guardado a sete chaves. Todo esse mistério caiu em desuso. Hoje, quanto mais exposição, por mais ridícula que ela seja, melhor.

No último sábado, foi publicada no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, matéria que relata a atual tendência do escritor brasileiro de aproximar sua vida à do protagonista de sua ficção. Além da grande maioria das histórias ser narrada em primeira pessoa, muitos dos traços apresentados coincidem com a trajetória particular do escritor. É a chamada autoficção, termo criado nos anos 1970, na França. Se trouxermos para a contemporaneidade, poderíamos dizer que se trata de um tipo de Facebook literário.

Escrito em forma de caderno de notas, Diário da queda, quinto romance de Michel Laub, é um livro a respeito de autor-recordações. As memórias de alguém podem ser algo penoso para quem seguirá sua linhagem. Um avô que sofreu com os terrores do nazismo não dará a devida atenção à sua família, pois estará sempre confinado com suas reminiscências, lembranças que ninguém poderá compreender. O pai, filho desse avô, sofrerá com isso. Ele não esteve em Auschwitz, mas o campo de concentração estará presente em sua vida, retratado no rosto amargurado de seu genitor. O neto daquele avô e filho de pai judeu, também sofrerá com aquilo que está muito distante de sua realidade, algo que ficou para trás na linha temporal e tornou-se um museu da humanidade no sul da Polônia, há milhares de quilômetros do Brasil. O fardo de ser judeu é para todos. Os velhos que sofreram os horrores do nazismo educam e sufocam suas crianças com mão de ferro para que elas estejam sempre desconfiadas e não sejam sufocadas pela mão de ferro do mundo.

O autor-narrador de Laub reflete sobre como Auschwitz e a culpa pelas atrocidades cometidas contra um colega de infância e as ofensas sofridas por ser judeu influenciaram na formação de sua personalidade. Tudo está de alguma maneira conectado, como se cada evento fosse apenas uma coisa complexa.

A narrativa é algo parecido com um fluxo de consciência, que retoma, de maneira ágil e sedutora, os fatos que envolveram a infância do narrador, sua adolescência, a chegada à vida adulta, a mudança de Porto Alegre para São Paulo, a descoberta da doença do pai. Todo esse movimento cíclico que evolui lentamente, trazendo revelações ao leitor, parece ter a finalidade de fazer com que a mente cheia de lembranças perturbadoras do narrador seja representada o mais fielmente possível.

Diário da queda é uma hábil mistura da linha cronológica da vida do autor com simples e pura ficção, para que não vejamos tudo pelo imaginário do escritor gaúcho.

Os motores da ficção

 
Texto publicado no Homo Literatus em 27 de novembro de 2013.

Ao ler o texto GUIA DE SOBREVIVÊNCIA: 5 Livros para quem deseja aprender a escrever ficção”, comecei a maquinar, como há muito não fazia, sobre os mistérios dessa profissão que almejo desde quando era (mais) jovem. Em seu artigo, Vilto Reis faz o que o próprio título diz: recomenda cinco obras aos que querem aprimorar ou até mesmo encontrar um caminho para tornarem-se escritores.
Escrever ficção foi algo que sempre me fascinou, em todo o seu processo criativo. A capacidade de elaborar uma trama, por mais simples que seja, botar a cabeça pra funcionar e desenvolver personagens, cenários, situações. Já me arrisquei, tentei criar uma história, um pequeno conto, enfim, todo leitor fascinado por literatura já deve ter passado por essa situação.

Inspirar-se em outros escritores pode ser uma saída. Mesmo os autores já consagrados têm suas referências. Alguns até se saíram melhores que suas fontes. Há um forte intertexto da literatura policial estadunidense, mais especificamente de Raymond Chandler, em grande parte da obra de Rubem Fonseca. Em contos como Mandrake, há até explícitas menções a obras protagonizadas por Philip Marlowe. Paulo Mandrake, o personagem de Fonseca, também possui traços bem parecidos com Marlowe. Particularmente, acho que Fonseca tornou esse gênero noir melhor, mais refinado.
Difícil é encontrar uma voz, um traço que caracterize o ritmo da narrativa. Escritores como Marçal Aquino são inconfundíveis. A leitura é densa e flui na velocidade de thrillers policiais do cinema. Essa característica pode ser comprovada em livros como Cabeça a prêmio e O invasor (que já tiveram adaptações fílmicas). Milton Hatoum e Michel Laub são possuidores, como avaliou o crítico Nelson de Sá, de prosa elegante. Difícil não ser cativado por Cinzas do norte (Hatoum) e Diário da queda (Laub).

Ser voraz leitor ajuda no processo da escrita? Não sei. Escrever o texto que aqui se apresenta não está sendo tarefa das mais fáceis. Montes de leituras talvez atrapalhem. Quem lê livros, lê resenhas, crônicas, artigos. A internet abriu oportunidade para um monte de gente que escreve muito bem mostrar seu trabalho. Leio textos de muita gente que, como eu, escreve porque acha que tem algo a dizer. O problema é: quem disse que o que tenho a dizer é importante? A qualidade dos outros textos pode levar à insegurança. Sentar aqui, escrever numa folha branca, ler, reler, passar para a tela do computador, organizar as ideias, tentar antecipar qual será a avaliação de quem vai lê-lo. Algo penoso? Não tanto quanto cortar cana, mas tem suas dificuldades. Criticar é uma coisa. Ser criticado é outra. Há a paranoia quanto à crítica silenciosa, daqueles que não comentam nem agride o que leem, mas, por dentro, refletem: “que sujeitinho mais besta!”.

O talento para a escrita, claro, é imprescindível. Tenho colegas que, vou te contar, escrevem bem pra caramba. Por esses dias encontrei um amigo que disse ter finalizado seu primeiro romance de mistério e aventura. Pelo que já li dele, serei um dos primeiros a adquirir o livro, caso seja publicado. Essa galera que compõe a literatura brasileira contemporânea também é muito boa. O interessante é que, hoje em dia, há vários cursos de produção literária. Nomes como Carol Bensimon e Daniel Galera já passaram por tais caminhos. Meu amigo, inclusive, também já fez o seu. Como o próprio Vilto diz em seu texto, apenas aprimoraram um talento que já era inerente.

O narrador de Michel Laub, em Diário da queda, diz que sua profissão exige apenas que escreva dois artigos por semana e publique um livro a cada década. Ele já conseguiu tornar a escrita sua única profissão. Consegue escrever ficção e sobre temas do mundo real. Até mais ou menos meu quatorze anos sonhava em ser roteirista de histórias em quadrinhos. Hoje, além de argumentista para gibis, almejo a literatura ficcional. Confesso que estou tentado a ler os livros indicados por Vilto. Quem sabe não seja uma porta de entrada para entender, ao menos um pouco, as engrenagens que movimentam os motores da ficção?

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Em favor da crônica futebolística

 
Texto publicado no Homo Literatus em 13 de novembro de 2013.

Quando se assiste a um jogo de futebol, as emissoras televisivas conseguem mostrar um lance em seus mínimos detalhes. O momento do passe, do chute, o salto do goleiro, o carrinho do zagueiro, a bola a estufar as redes. Para os fanáticos pela pelota, a câmera em slow motion é algo para se apreciar tal fosse uma pintura. A tecnologia é, às vezes, uma benção. Mas dificilmente essas imagens em câmera lenta conseguirão superar a crônica esportiva na descrição dos movimentos que antecedem uma jogada de efeito, um chapéu, um drible por entre as pernas, a pedalada, a cavadinha que desmonta um goleiro.

Para os boleiros literários, as páginas de esporte são um prato cheio aos domingos e segundas-feiras, com análises, pranchetas, críticas e palpites. Juca Kfouri e seus textos políticos, Paulo Vinícius Coelho e seus esquemas táticos, Tostão e sua obsessão pelo futebol arte. Já ouvi alguns dizerem que a crônica seria um gênero literário menor. Discordo. É graças a ela que muitos contos (esse considerado pelos preconceituosos um gênero maior) futebolísticos foram concebidos.

“Abril, no Rio, em 1970”, do volume de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, relata, com linguagem puramente jornalística, a melancólica história de um jovem que tenta chamar a atenção de um olheiro do Madureira num jogo teste. Mas o futebol é ingrato para aqueles que o amam e querem viver dele:
"Eles ganharam o cara ou coroa, escolheram o campo. Pirulito deu a saída, atrasando para mim, enfiei de curva para o Gabiru na ponta, mas a bola foi no pé do adversário. Corri pra ver se recuperava a jogada. Enquanto eles triangulavam em cima de mim eu pensava, porra, comecei enfeitando, agora estou igual a bobo na roda, nem sei o que estou fazendo."
Páginas sem glória carrega dois contos e uma novela homônima, que conta a história de Zé Augusto, o Conde, jogador malandro, adepto à boemia e às libações, jogador do Fluminense e do Bonsucesso nos anos 1950 e 1960. Misturando ficção com realidade, Sant’Anna conta a curta, porém, notável trajetória deste jogador que, ao contrário do protagonista de Rubem Fonseca, gostava mais de apostar no turfe do que de seu próprio ofício. Filho de influente deputado, Zé Augusto sabia os caminhos para se chegar ao gol. Categoria e elegância eram suas marcas dentro e fora do campo. Se este tipo de comportamento é execrado pela imprensa nos dias de hoje, que dirá na daquele tempo. Com sua apurada câmera narrativa, Sérgio Sant’Anna descreve, baseado em crônicas jornalísticas da época, as geniais jogadas do Conde, que sabia como ninguém deixar zagueiros a chutarem o vento e goleiros ridiculamente estatelados no chão:
"Não que Zé Augusto quisesse desrespeitar o Castilho, mas respeito demais também não tinha, pois não acompanhava o futebol profissional de perto. As pernas abertas do outro estavam pedindo e o Zé enfiou a bola entre elas, porque era o caminho mais fácil para o gol."
Com detalhado slow motion lírico, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna fizeram belas jogadas individuais, pois foram bem servidos por pontas de lança como Juca, PVC e Tostão, que, se não dão show, garantem o bom resultado das narrativas jornalísticas todas as semanas, dando chapéu naqueles que ainda não acreditam no valor literário da crônica esportiva.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O Chevalier de Edgar Allan Poe I

 
Texto publicado na Obvious em 2 de novembro de 2013.

Edgar Allan Poe é sabidamente um ícone das histórias de terror e mistério. 

Seu legado é de grandeza imensurável. Mas, talvez, a sua maior influência esteja nas narrativas policiais. Seu protagonista, o excêntrico chevalier C. Auguste Dupin serviu de base para a criação de inúmeros detetives. Arthur Conan Doyle concebeu Sherlock Holmes. Agatha Christie criou Hercule Poirot. Todos eles peculiares cavalheiros que resolvem enigmas por meio de investigações cerebrais, ao contrário do que ocorre no romance policial estadunidense, em que o personagem principal soluciona seus enigmas por meio da violência e do acaso, como Sam Spade e Philip Marlowe.

"Assassinatos na Rua Morgue" é o primeiro dos contos da chamada trilogia Dupin. O narrador, um Dr. Watson sem nome, para introduzir a trama a ser relatada, faz diversas comparações entre tipos de jogadores. Ele opõe enxadristas e jogadores de dama: os primeiros calculam, os últimos analisam. Alguns são inteligentes, outros concentrados e ainda há a classe dos perspicazes. Mas, segundo ele, o analista é o tipo de jogador mais atento, que nota variações externas e internas. É aí que se enquadra Dupin, um intelectual amante da escuridão, que lê, reflete e produz de maneira mais eficiente nas trevas.

 
Neste conto, um misterioso crime, em que mãe e filha são brutalmente assassinadas, é o quebra-cabeça a ser resolvido. O jornal apresenta testemunhas que ouviram barulhos no interior do apartamento em que ocorreram as mortes. Como eram de diferentes nacionalidades e não conheciam o "idioma" falado pelo suposto assassino, cada um dá sua opinião.

A força policial, como é recorrente nas narrativas criminais, mostra-se perdida. Aos seus olhos, o caso se define como insolúvel. É por isso que Dupin, um indivíduo de comportamento distraído e personalidade vazia, entra no caso, já que enxerga além dos relatos publicados pela imprensa local. Ele recorre a argumentação dialética e a estudos teóricos na busca pela verdade, provando sua grande bagagem intelectual. A descoberta do inimaginável assassino mostra o motivo pelo qual C. Auguste Dupin é considerado um personagem imortal e digno de inspiração para tantos escritores.

Anti-hérói. Sutil. Enigmático. Amoral. O chevalier de Edgar Allan Poe segue presente nas entrelinhas da ficção contemporânea.