Texto publicado em 21 de setembro de 2013 na Obvious.
Acordar, trabalhar, comer, sobreviver. Escrito em forma de diário, A Trégua,
do uruguaio Mário Benedetti, mostra a trajetória de um homem resignado à
rotina diária, que flutua sobre uma zona de conforto da qual não abre
mão.
Protagonista e narrador de seu cotidiano, Martin Santomé é o relator
dos dias que antecedem sua aposentadoria. Em meio a uma crise de
meia-idade, ele teme ao ócio iminente, que o arrancará de seu repetitivo
e monótono cotidiano laboral.
Seus hábitos são encarados como algo que o blinda de frustrações.
Qualquer evento que saia disto trás certo desequilíbrio emocional, por
isso, Santomé, viúvo e pai de três filhos, junto à mesa do escritório ou
de um café, vive dias automáticos, que remetem à mecânica maneira como
realiza seu trabalho de contador: “Hoje foi um dia feliz. Só rotina.”
Sujeito que se dá muito bem com a contabilidade, tem extrema
dificuldade em se relacionar com seus próximos. Dedica-se a coisas
exatas, ignorando a complexidade das existências que o cercam. O sexo é
uma atividade de prazer momentâneo, enquanto a vida em família se compõe
de relações conflituosas, já que ele não sabe e nem quer exercer seu
papel de pai. As antigas amizades são, em sua maioria, algo que não
deixou nenhum tipo de saudosismo.
Suas anotações diárias mostram que, por trás de cada rosto
impassível, sorridente ou amargurado, há a frequente e ininterrupta
sucessão de pequenas desgraças cotidianas. As rotinas paralelas se
entrelaçam, cada qual com seu mundo sombrio e particular.
As chances ilusórias de Martin Santomé, promessas de felicidade, são
dadas por Isabel e Avellaneda, as mulheres de sua vida. Cada
oportunidade constitui um abrupto e traumático rompimento cíclico, que é
seguido de indagações sobre a existência de um deus/Deus perverso e
manipulador.
Martin Santomé, metódico contador, faz um balancete existencialista
de sua biografia automatizada, desprovida de sentimentos. Quando ele
finalmente redescobre o que é sentir algo, um golpe fatídico tira a
única coisa boa de seu calculado e inexato dia-a-dia.
ah, eu quero.
ResponderExcluir