quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O balancete de Martin Santomé


Texto publicado em 21 de setembro de 2013 na Obvious.

Acordar, trabalhar, comer, sobreviver. Escrito em forma de diário, A Trégua, do uruguaio Mário Benedetti, mostra a trajetória de um homem resignado à rotina diária, que flutua sobre uma zona de conforto da qual não abre mão. 

Protagonista e narrador de seu cotidiano, Martin Santomé é o relator dos dias que antecedem sua aposentadoria. Em meio a uma crise de meia-idade, ele teme ao ócio iminente, que o arrancará de seu repetitivo e monótono cotidiano laboral. 


Seus hábitos são encarados como algo que o blinda de frustrações. Qualquer evento que saia disto trás certo desequilíbrio emocional, por isso, Santomé, viúvo e pai de três filhos, junto à mesa do escritório ou de um café, vive dias automáticos, que remetem à mecânica maneira como realiza seu trabalho de contador: “Hoje foi um dia feliz. Só rotina.”

Sujeito que se dá muito bem com a contabilidade, tem extrema dificuldade em se relacionar com seus próximos. Dedica-se a coisas exatas, ignorando a complexidade das existências que o cercam. O sexo é uma atividade de prazer momentâneo, enquanto a vida em família se compõe de relações conflituosas, já que ele não sabe e nem quer exercer seu papel de pai. As antigas amizades são, em sua maioria, algo que não deixou nenhum tipo de saudosismo.


Suas anotações diárias mostram que, por trás de cada rosto impassível, sorridente ou amargurado, há a frequente e ininterrupta sucessão de pequenas desgraças cotidianas. As rotinas paralelas se entrelaçam, cada qual com seu mundo sombrio e particular.

 As chances ilusórias de Martin Santomé, promessas de felicidade, são dadas por Isabel e Avellaneda, as mulheres de sua vida. Cada oportunidade constitui um abrupto e traumático rompimento cíclico, que é seguido de indagações sobre a existência de um deus/Deus perverso e manipulador. 

Martin Santomé, metódico contador, faz um balancete existencialista de sua biografia automatizada, desprovida de sentimentos. Quando ele finalmente redescobre o que é sentir algo, um golpe fatídico tira a única coisa boa de seu calculado e inexato dia-a-dia.

Um comentário: