Um
policial amarrado a uma cadeira e com várias e assombrosas escoriações pelo
rosto, causadas por uma chuva de socos cruzados e diretos. Do outro lado do
depósito, um distinto rapaz caminha, mãos descontraidamente enfiadas nos
bolsos, cigarro despretensiosamente caído ao canto da boca, na direção do
refém, que implora por misericórdia. Como se naquele momento não sentisse
nenhum tipo de sentimento, a não ser o de satisfação e sossego, o rapaz liga o
rádio e dá uma trilha sonora agitada e dançante a uma cena violenta e bizarra
de tortura, que causará espasmos de incredulidade no espectador e ficará para
sempre em sua memória.
Evidente,
caro leitor, que se trata de uma cena famosa, que coloca o filme “Cães de
Aluguel” (Reservoir Dogs, 1992) como
um dos melhores da filmografia de Quentin Tarantino. Não apenas pela trama
aparentemente simples, que ganha uma grande complexidade por conta da atuação
impecável dos atores que nela atuam. Mas também por um elemento que é
indispensavelmente notável nos filmes tarantinescos: a música. Com uma
habilidade sem igual, Quentin Tarantino transforma suas trilhas sonoras em
verdadeiras personagens abstratas, que são costuradas às personagens concretas,
físicas e visuais. Poucas formas de arte conseguem promover uma canção como a
sétima arte. Muitas bandas tornaram-se famosas por apenas uma música que se
encaixa perfeitamente a uma cena capital do cinema. O diferencial nos filmes de
Tarantino é a interação de coadjuvantes e protagonistas (se é que eles existem)
com a música que está tocando. São eles que escolhem seus hits favoritos, sendo grandes entendedores musicais. Não se tratam
apenas de músicas que dão dramaticidade ou acompanham a ação e o suspense de
uma cena, mas sim melodias dançantes que fazem os atores cuidadosamente
selecionados pelo diretor atingirem o ápice de suas atuações.
Na
cena descrita inicialmente, Vic Vega (Michael Madsen) - vulgo Mr. Blonde -
sintoniza o rádio em seu programa musical favorito, o “K-Billy, o som dos anos
70”, que é mencionado constantemente no decorrer da trama. Uma voz monótona e
grave anuncia a próxima canção: Stuck in
the middle with you, da banda escocesa Stealer Wheels. Dançando e
assoviando ao ritmo do folk rock
exalado pelas caixas de som, Vega inicia a tortura de sua presa, retalhando-a e
decepando sua orelha com um canivete. A melodia dançante que entra em contraste
com uma circunstância insana e brutal, faz o espectador viajar em uma situação
absurdamente bela e grotesca, que banaliza a violência física e atmosférica do
ambiente.
“Pulp
Fiction” (1994) e “À Prova de Morte” (Death
Proof, 2007) talvez sejam os filmes mais marcantes, musicalmente falando,
da filmografia de Tarantino. As personagens são envolvidas de uma maneira
intensa com o que ouvem. No longa de 1994, enquanto entabulam um diálogo cômico
(por sua fútil inteligência) sobre as diferenças entre o McDonald’s europeu e
americano, Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson)
sintonizam o rádio automotivo até chegarem ao funk do grupo americano Kool & The Gang, através da música Jungle Boogie. Eles não cantam ou falam
sobre a música, mas ela está ali, oculta, dando um som ambiente
predominantemente urbano enquanto o veículo desliza pelas ruas de Los Angeles,
a capital da literatura noir. As
cenas protagonizadas pela personagem-símbolo do filme são delirantemente
inesquecíveis. Mia Wallace (Uma Thurman) se mostra uma viciada em composições
que remetem às saudosas décadas de 50, 60 e 70. Ela dança antologicamente ao
lado de Vincent Vega (que fez John Travolta rememorar seus melhores momentos em
“Os Embalos de Sábado à Noite”) na lanchonete de temática remetente às décadas
acima citadas. Muitos casais com certeza já arriscaram um remake da cena musicada por You
never can tell, do lendário Chuck Berry, bombando na vitrola. E, claro, não
há como não mencionar o mergulho intenso de Wallace, regado a uma dose cavalar
de cocaína, nas profundezas da canção Girl,
You’ll be a woman soon, da banda oitentista de alternative rock Urge Overkill, antes de acidentalmente ser
acometida por uma brutal overdose. Entre as protagonistas de “À Prova de Morte”
está uma incansável jukebox,
devidamente instalada em um aconchegante e convidativo bar de beira de estrada.
É por conta de uma música embalada por esse clássico aparelho de som que uma
das cenas mais enlouquecedoras da história do cinema (exagero?) é realizada:
quando Down in Mexico, entoada pelos
americanos do The Coasters, começa a ser tocada, Arlene (Vanessa Ferlito) dá a
Stuntman Mike (Kurt Russel) uma inesquecível lap dance de fazer muito marmanjo ter alucinações e taquicardia.
Conforme o ritmo da música evoluí, Arlene desliza habilmente seu corpo em torno
do maníaco e misterioso dublê. Lunático esse que joga seu carro em alta
velocidade ao encontro de um veículo com cinco garotas, que ouvem Hold Tight, da banda britânica Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich, a canção derradeira
de suas vidas, antes de serem dilaceradas pelo impacto metálico dos veículos.
Em
“Jackie Brown” (1997), - adaptação do romance Rum Punch, de Elmore Leonard - a personagem homônima (Pam Grier) e
o agente de finanças Max Cherry (Robert Forster) são colecionadores de K7’s e
LP’s de música disco, que conversam
sobre os seus gostos musicais, trocando conhecimentos que dão ao espectador uma
série de referências a bandas e cantores sessentistas e setentistas como Bobby
Womack, Brothers Johnson, The Delfonics e The Grass Roots.
“Kill
Bill – Vol. 1” (2003), - talvez o menos marcante musicalmente – apresenta as
japonesas tocadoras de rock de garagem da banda 5.6.7.8’s que fazem sua platéia
nipônica dançar em uma apresentação ao vivo. Esse show precede a grande matança promovida por uma certa noiva (Uma
Thurman) sedenta por vingança., vestida em um macacão amarelo que remete ao
imortal Bruce Lee, no clássico “Jogo da Morte” (Game of Death, 1978).
Todo
esse conhecimento musical e a preocupação em adicionar à personalidade de suas
personagens gostos musicais interessantes são algumas das muitas qualidades de Tarantino.
No cinema contemporâneo talvez não haja diretor mais completo, que não disfarça
as fontes que utiliza para beber e fazer grandes filmes. Costumo dizer que suas
obras são constituídas por retalhos minuciosamente costurados por mãos
habilidosas. Como resultado final, forma-se uma colcha com recortes variados do
que há e houve de melhor no cinema clássico e moderno. E a trilha sonora, um
verdadeiro mosaico musical, é a cereja de um bolo de tramas viciantes.
Quentin
Tarantino nos prova que, assim como a vida, o cinema sem música seria um erro.
por mim ele ganharia todos os prêmios de melhor música, melhor trilha sonora, melhor tudo.
ResponderExcluirputz, isso só me lembra q ainda não fui ver a mostra do CCBB.