sábado, 2 de fevereiro de 2013

"O centauro no jardim": Um manual da vida

Texto publicado no site Contraversão, em 01/02/2013.

Uma mãe em trabalho de parto geme em sua cama, localizada numa pequena casa situada no interior do Rio Grande do Sul. Enquanto a parteira se esforça para trazer o seu bebê ao mundo exterior, o pai e marido anda de um lado para o outro, ansioso para que tudo acabe bem e então ele possa saber o sexo da criança. Quando a parteira finalmente consegue tirar a criança do ventre da mãe, um grito de horror percorre a casa. O pai corre para ver o que estava se passando, a surpresa: uma estranha combinação de ser humano e cavalo jazia ao pé da cama. Um centauro acabara de chegar ao mundo.

Em O centauro no jardim, Moacyr Scliar (1937 – 2011) mostra todo o poder de seu imaginário ao narrar a saga de Guedali, um centauro nascido em uma pequena fazenda no distrito gaúcho de Quatro Irmãos. Conhecido por possuir uma narrrativa rica que aborda temas e seres míticos, Scliar nos coloca diante da possibilidade (ou seria certeza?) de convivermos com seres mitológicos. O que aconteceria se eles realmente existissem e passassem a habitar nossos cotidianos? Catástrofes, no mínimo, como foi provado a partir dos primeiros contatos com seres totalmente (ou não) humanos.

Desde seu nascimento, Guedali obviamente encontra dificuldades para se adaptar a um mundo habitado por seres escancaradamente diferentes de sua anatomia. Narrado em forma de memórias pelo próprio protagonista em idade já avançada, o romance mostra todas as dificuldades encontradas pela família do então menino Guedali para educar um ser metade homem, metade equino, que possuía instintos e necessidades voltados para suas duas naturezas e precisava ficar a maior parte do tempo escondido em uma quarto escuro, fora do alcance de olhares estranhos.

Como não poderia deixar de ser, o centauro passa constantemente por crises existenciais. Afinal, qual seria a sua verdadeira natureza? A humana, que o faz desejar mulheres? Ou a equina, que o incita a copular com as éguas que habitam a pequena fazenda onde nasceu? Quando se vê um adolescente quase adulto, o centauro cai no mundo, passando por diversos lugares em que tem contato com seres e personagens igualmente inusitados, que contribuem para o efeito mítico da história. Além das situações curiosas que só um ser desse gabarito poderia vivenciar, Guedali tem experiências peculiares a todos os homens, como o primeiro amor, o gosto pela leitura, as vontades de formar-se em determinadas profissões… Ao narrar a trajetória do seu famigerado centauro, que passa por Porto Alegre, São Paulo e chega até ao Marrocos, Scliar mostra ao seu leitor que a vida é uma sucessão de idas e vindas, acasos e coincidências, e que devemos percorrer o mundo inteiro, caso seja necessário, para descobrir quem realmente somos.

Em tempos de O Senhor dos Aneis e O Hobbit, com suas longas e letais jornadas repletas de seres fantásticos, O centauro no jardim é um livro sobre uma expedição muito mais incerta e perigosa: a vida. Moacyr Scliar, com seu fabuloso imaginário criativo, nos deixou uma obra que ultrapassa o conceito de fantástica ou pós-moderna. É um verdadeiro manual da vida.

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