Aviso já: as opiniões e impressões aqui expostas são de um leitor que exerce seu ofício por prazer e certamente parecerão superficiais para os mais, digamos, estudados.
Certa vez, durante uma aula na faculdade, perguntei a um professor sobre a relevância de "Guerra e Paz", romance da autoria do russo Liev Tolstói. Após pensar por um breve momento, o docente respondeu: "Tem que ser encarado". Essa frase acabou ficando marcada em minha mente, pois, de fato, por mais que utilizemos a literatura como forma de entretenimento, algumas obras mais densas devem ser lidas por aquele que busca aprimorar seu histórico de leituras.
Ainda não encarei "Guerra e Paz", mas acabei de finalizar a experiência fantástica de me embrenhar nas veredas mortas de João Guimarães Rosa, com Riobaldo, Diadorim, Medeiro Vaz, Joca Ramiro e toda a jagunçada de "Grande Sertão: Veredas". Há muito tenho um grande apreço pelas estórias roseanas. Os contos "A hora e vez de Augusto Matraga", "O duelo" e "Soroco, sua mãe, sua filha" estão entre aqueles que li, reli e continuo relendo sempre que posso, dado o fascínio que tenho por tais histórias.
E foi com grande prazer que cheguei a "Grande Sertão: Veredas". Apesar de não ser um bom leitor de poesia, a prosa poética de Guimarães Rosa é algo que me fascina pela sua engenhosidade. O ritmo dado aos períodos, os neologismos, a complexidade com que cada frase foi escrita, enfim, são elementos que muitas vezes incitam o leitor a ler em voz alta aquela história fortemente ligada à tradição oral. Médico por formação, Guimarães Rosa fez verdadeiras operações nas palavras que manipulou, transformando-as em inesperados e fabulosos termos. Verbos que viram substantivos, substantivos verbalizados. "Grande Sertão: Veredas" faz com que o leitor penetre num infinito sertão de palavras, cheio de armadilhas semânticas.
Além de todo o aparato linguístico, a trama em si fascina pela simplicidade complexa do jagunço Riobaldo, narrador da história, que a conta já em sua velhice. Um homem que viveu o dilema de gostar além do que poderia do jagunço Diadorim, teve dúvidas com relação à existência ou não de uma entidade diabólica e a certeza de que "viver é perigoso". Suas divagações a respeito de valores e crenças que adquiriu no decorrer de sua jornada são coisas que convidam a refletir sobre o sentido de nossas vidas. O que viemos fazer no mundo? Qual é a nossa função? Devemos mandar ou obedecer? Sermos homens pacatos da grande cidade ou jagunços que matam por necessidade e desbravam o sertão por coragem?
A certa altura da história, Riobaldo é surpreendido por tiros em um momento de sossego. Então, ele olha para uma cena composta por homens que guerreiam aos gritos e disparam ferozmente o chumbo de suas armas. Tal situação surreal ele define como "mundo fantasmo". Ou seja: algo imaginário, alucinatório, definido (como me foi explicado pelo jornalista Braulio Tavares) por essa inesperada inversão de gênero no final da segunda palavra.
É preciso ter a coragem do mais viril jagunço para encarar o fabuloso "mundo fantasmo" presente nas veredas mortas do grande sertão de Guimarães Rosa. Porém, por mais árdua que seja, tal jornada certamente valerá a pena.
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