domingo, 16 de setembro de 2012

Ficçãozinha IV

Tirou a tarde para revirar, arrumar, desfazer-se e organizar velharias. Embora seja um ato simples e teoricamente corriqueiro, sabia que remexer no passado, seja ele material ou abstrato, é uma coisa perigosa. Ainda mais quando se mexe em fotografias, essa arte singular que nos leva a um tempo bom, ruim, alegre, difícil, já distante.

Pais, tios, irmãos, irmãs, primos, primas, tios, tias, amigos. Tudo ia passando por suas mãos, fazendo com que sua expressão mudasse do riso ao cenho franzido a cada imagem envelhecida que seus olhos apreendiam. Quando estava acabando de arrumar tudo, escondida no fundo de uma caixa de sapatos, ela, aquela que participou tão ativamente de sua vida por um (já longínquo) ano, como um soldado oculto que executa uma emboscada, apareceu. E ele sentiu o peso do tiro.

A foto fora tirada em uma antiga boate, popularmente movimentada na época. Cartazes de um refrigerante extinto estavam colados na parte da parede que fazia parte da imagem. Uma garota que por ali transitava fora flagrada no infeliz momento do piscar de olhos. Uma parte do balcão do bar, algumas pessoas de costas, copos de creveja. No centro do cenário, em primeiro plano, ele e ela.

Com as cabeças encostadas uma a outra, sorriam com olhos pequenos que evidenciavam o uso recente de alguns baseados, tão comum na rotina dos então namorados. Ele, com agora ridículos colares, barba e cabelos por cortar, numa tentativa infantil de imitar algum hippie. Ela, com brincos, presilhas, vestido, enfim, estilo que tinha a mesma intenção do seu parceiro.

Há tempos, muitos anos, na realidade, não pensava nela. Fez um grande esforço para lembrar o motivo do término do namoro. Não conseguiu. Alguma idiotice adolescente, na certa. Imagens e sons inundaram sua mente já envelhecida. A risada estridente, o cheiro, a inexperiência no sexo, as conversas, as viagens, os planos, as promessas. Promessas. Todas em vão. Não ficaram juntos, nunca mais se falaram. Quando se encontravam em algum lugar, fingiam não se verem. Aliás, desconhecia seu paradeiro.

Ele se formou, fez mestrado, doutorado, casou-se, teve filhos, netos, enviuvou. Ela, com certeza deve ter constituído família, já que era seu sonho. Seu psicológico não estava preparado para essa avalanche emaranhada de lembranças emotivas. Uma chuva de lágrimas começou a cair sobre a foto amarelada pelo tempo. Ele a deixou cair e, enquanto acompanhava sua lenta queda até o chão, se deu conta de como a vida era cruel. Vivemos, trabalhamos, acumulamos, lutamos, choramos. Para quê?

Todas as coisas boas terminam assim: escondidas no canto de uma caixa de sapatos.

11 comentários:

  1. Não sou muito de revirar passado. Tenho mesmo muito poucas fotos que me remetem a um passado de mais ou menos 15 anos, tudo além disso acho que ficou esquecido, enterrado lá atrás. Eu sou muito voltada para o futuro, mas tenho lé meus momentos nostálgicos uma vez ou outra...

    Beijocas

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  2. Adorei a ficçãozinha,
    me identifiquei.
    Sou dessas de colecionar caixas e lembranças. Já me disseram para parar com isso, mas é mais forte que eu.

    Acredito que nem todas as coisas boas acabam escondidas em caixas de sapato, mas sim aquelas que ainda não conseguimos resolver ou que não nos desapegamos ainda.

    Coisas boas geralmente ficam expostas em lindos porta-retratos, na sala de estar, à vista de todos que nos visitam ou em murais enfeitados no quarto.

    É preciso fazer de vez em quando essas faxinas nas caixas e no nosso coração :)

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  3. Gostei.
    A caracterização do "passado" em contraste com o "presente" apresenta um ótimo Conflito nesta Cena.
    É um belo conto, por sinal.
    Parabéns, meu velho!
    Um abraço!
    Assis

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    1. Obrigado, Assis. Sempre bom receber elogios de um professor.

      Abraço.

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  4. Uau. Uma dose considerável de melancolia, lirismo e realidade.
    Simplesmente perfeito. Sentimental, sem ser piegas. Descritivo, sem desviar a atenção da narrativa.
    Acredito que qualquer pessoa possui esse lado mais emotivo que o leva a vasculhar o passado e procurar nele algum resquício da alegria até então oculto.
    A racionalidade com que você lapida um texto bonito é admirável.
    Acho que isso resume bem: Admirável.

    Abraços.

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  5. Sempre acho que bons textos são aqueles que produzem no leitor as mesmas emoções da personagem. Catártico seu texto, Murilo.
    Parabéns (:
    Abraço.

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  6. Gostei do seu blog. Podia?!
    Rs.
    Voltarei sempre.
    Abraços

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  7. A narrativa do ambiente pormenorizada,nos coloca dentro da cena.
    A precipitação, proposital, da ação, transcorre de forma veloz, como em um clip musical,dando um ar de modernidade descritiva.
    Interessante e cativante texto fictício.Parabéns!Abraço fraterno do amigo leitor.:-BYJOTAN.

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  8. Estou conhecendo vc através do amigo Enigmático
    gostei muito das postagens já seguindo seu blog beijos,Evanir.

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  9. doeu.
    isso acontece todo dia, e o pior é q sabemos e não fazemos nada para mudar.
    a sugestão é fazer a limpeza nas caixas o quanto antes, pra não perder muito tempo.

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